sexta-feira, 24 de julho de 2009

uma palavra

para Rodrigo de Souza Leão,
o “Seomario”, em memória.



a todo instante
cotidianamente
pichada nas paredes
dos velhos edifícios
do centro da cidade
nos anúncios luminosos
nas vitrines
nas esquinas
desenhada sobre maços de cigarros
rabiscada nos muros
sussurrada nos bares
escorrendo nos telhados
caída no adro
entre os mendigos
famintos de humanidade
uma palavra se insinua

ecoa na música do rádio
aloja-se sorrateiramente
explode em poemas
eleva-se em uma prece
invade corredores
salas lares alcovas
as celas das cadeias
claustros prostíbulos
todos os espaços
públicos e privados

é a pedra de toque
dos discursos políticos
é a máxima expressão de ternura
nas promessas dos amantes
revigora as esperanças
é bálsamo para as angústias
compromisso nos armistícios
é cura de todos os vícios
é imprescindível pra paz
é inevitável nos livros

não obstante
ninguém sabe
a quem pertence
ninguém sabe
a que exatamente se destina
ninguém sabe
o que significa
conquanto ecoe
nos vales e desfiladeiros
conquanto suba montanhas
inunde oceanos
envolva o mundo
em um manto de ilusão

os cegos podem lê-la
os surdos ouvi-la
gritam-na os mudos
mas talvez somente os loucos
possam porém elucidá-la
compreendê-la integralmente
sem máculas
sem banalizá-la
despida de egoísmo e preconceitos

não somos sequer capazes de imaginar
as conseqüências da sua exata compreensão
libertaríamos-nos da escuridão primitiva?
renovaríamos a nossa herança anímica?
condenar-nos-íamos ao caos?

quem a terá criado?
que deus deusa anjo
incrustou-a no nosso imaginário
como se um dia pudesse ser exercida
independente de qualquer paixão?
independente de idolatrias?
como se fosse coisa mansa
indolor
lume na escuridão?
não como um fardo incômodo
não como obrigação
não como é entendida
descolada da razão?

que maldição a acompanha
dos tempos pré-históricos aos dias atuais
para que em seu nome se façam guerras
cometam-se crimes
pratique-se a violência?
como se tudo isso não a negasse
como se tudo isso não fosse antônimo

talvez devêssemos esquecê-la
arrancá-la dos dicionários
dos textos sagrados
das literaturas
apagá-la das canções
dos poemas
lixá-la das pichações
das pedras entalhadas
dos desenhos
dos corações
da história das civilizações

atravessemos a porta da fantasia
quiçá encontremos
um tempo singular
no qual as palavras estejam virgens
e que a palavra omitida
jamais seja tomada
como sinônimo de submissão
jamais seja usada
para justificar a fera que ainda vive encoberta
nos nossos inconscientes
para abonar os nossos primitivos temores
para desculpar o nosso apetite
de vida
e de morte

mas o que seríamos se isso fosse possível?
seres divinos?
cisnes?
humanos?
super-homens?
novas consciências?
habitantes do tédio?

e assim como ela
uma palavra
outra palavra
viria para substituí-la
até que venha o absoluto não ser
o inconcebível nada
que inevitavelmente
virá.


Fred Matos

sábado, 18 de julho de 2009

61 – A Dama do Metrô.





Malu tinha remexido em quase todas as roupas existentes naquele sórdido quarto. Abriu o guarda-roupa, vasculhou o seu interior e não viu nada que lhe interessasse. Já estava se dirigindo para a porta quando ouviu uma voz esganiçada berrando.


- Lá vem àquela bichinha escrota – pensou.


Nisso a porta foi aberta com estrondo e entra Ronildo esbravejando impropérios dirigidos a alguém que Malu não conseguia ver. Assim que a viu, mudou o tom de voz, e falou no tom natural.


- Desculpe, Malu a gritaria, mas com essa cambada de veados que não sabem fazer nada só funciona aos gritos.


Beijou-a nos lábios e continuou a falar.


- A vagabunda da Nilsinha te trouxe aqui? Aquele incompetente, não sei por que a aturo, só quer saber de fuder os outros e boquete, nada mais. Vamos, venha comigo que lhe arrumo algo decente.


E sem esperar alguma reação por parte dela, pegou-a pela mão e saíram do quarto.


- Esse lugar é despejo dos trouxas, jogam as roupas que não querem mais, depois mando lavá-las e dou aos pobres.


O corredor estava vazio, passaram por três portas e na quarta, entraram.


- Pronto aqui está melhor.


Realmente, Malu viu um quarto arrumado, limpo e bonito. Desorientada ficou parada sem saber o que fazer, se sentava ou dava meia volta e sai daquele lugar. Ronildo percebendo o embaraço dela, abraço-a arrastando-a até o pequeno sofá que estava no canto esquerdo do quarto. Era o lugar mais iluminado com um abajur grande todo enfeitado de vermelho, roxo e cor-de-rosa.


- Você não está entendendo nada.


- Infelizmente ou felizmente não estou mesmo. Afinal onde estamos e quem é você?


- Bom eu sou o Ronildo que você conheceu no metrô.


- Não parece não com esse traje dark de bicha de segunda categoria.


- Deixe-me explicar – disse sentando ao lado dela.


- Acho bom mesmo.


- Bom o Ronildo que você conheceu é um pequeno empresário que durante a semana trabalha duro para que sua empresa lhe renda algum dinheiro. Não quero muito não, o suficiente para viver e me divertir. E graças a Deus, se ele realmente existe, a empresa está indo muito bem, dando-me condições de fazer essa brincadeira uma vez por mês.


- Quer dizer que uma vez por mês você se transforma num aparato desmunhecado de uma figura horrorosa?


- Isso mesmo, mas não vamos esculhambar, né.


- Sou convidada para uma festa e o que encontro é um bando de desmiolado e repugnante.


- Olha aqui está o que guardei para você. Vista e vamos nos divertir que durante a noite a gente vai conversando.


Malu abriu o pacote que ele lhe dera. O que viu foi um belo traje preto, não de couro, apenas em algumas partes do vestido e que se via umas tiras de couro, meio longo, dando um ar de dark chique.


08.02.07
pastorelli

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Homenagem da Casa das Rosas ao escritor Rodrigo de S. Leão

Casa das Rosas

Seo Mario: 'Vivo numa bomba-relógio circular'

FONTE: ESTADÃO
Suplemento Aliás
Márcia Vieira - O Estado de S.Paulo
Rodrigo de Souza Leão morreu aos 43 anos deixando um romance e poemas que delineiam a esquizofrenia

ROTA DE FUGA - A doença o levou à literatura, que, por sua vez, o ajudou a viver com as alucinações

Cristina Carriconde/Divulgação: ROTA DE FUGA - A doença o levou à literatura, que, por sua vez, o ajudou a viver com as alucinações

- A literatura e a esquizofrenia vieram juntas há exatos 20 anos. Foi depois do primeiro surto, aos 23, que Rodrigo de Souza Leão começou a escrever ficção sem parar. Em algumas vezes, versos rabiscados no primeiro pedaço de papel que aparecesse pela frente. Noutras, poesias curtas em revistas literárias na internet. O mundo virtual era sua vitrine. Rodrigo editava uma revista literária, escrevia para sites e mantinha um blog, o Lowcura. No ano passado, conseguiu realizar um sonho: publicou pela editora 7 Letras seu primeiro livro em prosa, Todos os Cachorros São Azuis. Ficou eufórico por ser um dos 50 finalistas do Prêmio de Literatura Portugal Telecom, ao lado de nomes como José Saramago, Manoel de Barros e Milton Hatoum. O romance, quase uma autobiografia, é uma imersão no mundo da esquizofrenia.

Rodrigo morreu na semana passada, aos 43 anos, de ataque cardíaco, amarrado a uma cama numa clínica psiquiátrica no Rio onde tinha pedido para ser internado uma semana antes temendo um surto. Na saída para a clínica se recusou a entrar no carro dirigido pela mãe. Tinha medo de não se controlar, tomar o volante e acabar provocando um acidente. Foi de táxi agarrado em Dulce, a irmã caçula. "Acho que ele se libertou. Era muito sofrimento", desabafa a mãe. A vida foi dura para Rodrigo. Assim como para os pais, Sylvia e Antonio, e os irmãos mais novos, Bruno e Dulce. No dia 25 de junho, antes de sair para a clínica, Rodrigo escreveu uma carta para a família, com tom de despedida.

"Vocês sabem muito bem que a minha vida não foi fácil. Sofreram muito. Sofremos junto. Sofremos nós. Eu gostei da vida e valeu a pena. (...)Tomara que exista eternidade. Nos meus livros. Na minha música. Nas minhas telas. Tomara que exista outra vida. Esta foi pequena pra mim. Está chegando a hora do programa terminar. Mickey Mouse vai partir. (...) Nunca tenham pena de mim. Nunca deixem que tenham pena de mim. Lutei. Luto sempre. Desculpem-me o mau humor. É que tudo cansa."

Difícil saber o que detonou a última crise. Dez dias antes, tinha ido ao ar uma cena da novela Caminho das Índias, de Glória Perez, em que Tarso (Bruno Gagliasso), numa crise esquizofrênica, atira em Murilo (Caco Ciocler). Rodrigo ficou perturbado. "Ele me disse: ?Mas esquizofrênico não mata. Meus amigos e vocês vão ficar com medo de mim, achando que sou um assassino? ", lembra a mãe. Não adiantou a família repetir por dias seguidos que aquilo era ficção.

"Ele já não vinha muito bem", lembra Dulce. "Tinha delírios, tomava muitos remédios, achava que agentes tinham colocado um chip nele . Depois da cena da novela, ficou com medo de matar o irmão." O chip e os agentes estão no relato do narrador de Todos os Cachorros São Azuis e fazem parte também da loucura do personagem da novela. "O Tarso tem muito do Rodrigo. Meu irmão tinha mandado o livro para a Glória logo que a novela começou. Não sei se ela leu", diz Dulce. Sim, leu. "O livro é maravilhoso e me inspirou, assim como outros depoimentos de esquizofrênicos, a escrever as cenas do Tarso", confirma a novelista.

O chip e os agentes apareceram desde o primeiro surto. Rodrigo trabalhava no escritório da Caixa Econômica Federal. Achou que estava sendo perseguido até pelo presidente da CEF. Desceu 43 andares de escada no escuro para fugir dos tais agentes. Descontrolado, foi internado pela primeira vez com o diagnóstico de esquizofrenia, doença mental que se caracteriza por alucinações e mania de perseguição. Anos depois, veio a segunda internação, quando até a polícia foi chamada para arrombar a porta do apartamento onde ele tinha se trancado.

No livro, Rodrigo narra os horrores da clínica. "Hospício era um lugar cheio de flores lindas, mas podre por dentro. (...) Todas as vezes, eu desacreditava em Deus. Se havia um lugar como o hospício, era sinal de que Deus não existia. Ou ele existia e não queria saber de quem estava dentro daquele pequeno inferno."

Quando Rodrigo saiu do "inferno", começou a escrever. "A esquizofrenia o levou para a literatura, que, por sua vez, o ajudou a conviver com a esquizofrenia", acredita a irmã. Suzana Vargas, professora de Rodrigo na faculdade de jornalismo e amiga de todas as horas, concorda. "Ele sempre teve talento. A partir do primeiro surto, mergulhou na literatura. Foi o modo que encontrou para conviver com aquilo."

Suzana acredita que, com a publicação do romance, ele estava encontrando o seu lugar na literatura. "O livro é um soco no estômago, um material maravilhoso do ponto de vista literário e também uma maneira de entender o que se passa na cabeça de um esquizofrênico."

Antes do primeiro surto, Rodrigo já era um leitor compulsivo. Leu tudo de Marcel Proust. Devorou os poemas de Charles Baudelaire e os textos de Friedrich Nietzsche. Mas sua grande paixão era Rimbaud.

?O ataque cardíaco que matou Rodrigo não foi surpresa para a família. Além de esquizofrênico, ele tinha TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo), era hipertenso, fumante e sedentário. "Ele nunca fumava só um cigarro por vez. Tinha que ser cinco seguidos", lembra o pai. Médico, Antonio passou a estudar esquizofrenia. Descobriu que seu filho era do tipo esquizofrênico paranóico. "Tinha mania de perseguição e de grandeza. Achava que nós éramos coniventes com os agentes."

Antonio guarda em casa os originais de Tripolar , romance do filho, ainda inédito. "É um bom livro. A esquizofrenia não alterou a produção intelectual", acredita. Um dos últimos poemas que Rodrigo postou no blog Lowcura foi "Tudo é pequeno/a fama/a lama/o lince hipnotizando a iguana. O que é grande/é a arte/Há vida em marte."

Foi Antonio quem recebeu o telefonema avisando que Rodrigo tinha sido encontrado morto na manhã de 2 de julho. Em Todos os Cachorros São Azuis, o narrador conta: "Quando o hospício estava cheio, era a hora de ficar quieto. Qualquer coisa e você poderia ser amarrado à cama. Dentro do cubículo e amarrado era a morte."

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Entrevista do Haigatos com nosso amigo: Tchello d’Barros

QUEM É Tchello d’Barros?


Sou escritor, artista visual e viajante. Por enquanto publiquei 5 livros de poemas, realizei cerca de 40 exposições, entre individuais e coletivas, e andei por uns 20 países. Eventualmente ministro oficinas literárias e cursos de desenho. No paralelo, como designer free-lancer atendo os segmentos de Publicidade, Moda e Dècor.

Tchello fotografado por Gian Gadotti

silêncio no bosque

o quê estão a sonhar

os gatos da Edith?

Nota: primeiro haigato de Tchello d’Barros, publicado em seu livro de haicais “Olho Zen” (Ed. Multi-prisma – Blumenau-SC – 2000 d. C.)

Trata-se de um pequeno horto florestal atrás da biblioteca pública em Blumenau, onde há alguns túmulos dos gatos da atriz blumenauense Edith Gaertner (1882 – 1967 d. C.), que fez carreira nos palcos da Alemanha. Edith tinha grande afeto pelos gatos. Ao morrerem, os felinos eram enterrados com direito a funeral e cortejo fúnebre. Estão enterrados ali os gatos: Pepito, Mirko, Bum, Peterle, Musch, Schnurr, Sittah, Putze e Mirl.

arte de T.d'B.

um gato gorducho

ignora o rato que passa

felino feliz


Haigatos – Qual a tua visão hoje a respeito dos mau-tratos com animais?

Tchello d'Barros.: Minha percepção é de que tem havido algumas conquistas em prol da proteção da fauna, apesar de nosso país abrigar um dos maiores tráficos de animais, onde muitos morrem no meio do processo todo. Recentemente proibiram animais nos circos, o que considero uma evolução real.

Certa vez na Espanha acabei assistindo uma das tradicionais touradas e saí de lá quase vomitando de pena daqueles Miúras. Me disseram que ainda mantém isso porque atrai turistas, gera emprego e renda, essas coisas. Em meu próprio Estado de origem, Santa Catarina, ainda não se coibiu totalmente uma manifestação que ocorre em algumas pequenas comunidades, a tal Farra-do-Boi. E ainda ocorrem de norte a sul, apesar de proibido, as chamadas Rinhas-de-Galo, inclusive o Duda Mendonça, marqueteiro de campanha do presidente Lula foi preso numa dessas rinhas. Apesar dos avanços, os fatos evidenciam que há muito ainda por ser feito. Pessoalmente fico revoltado, e muito triste, mas triste de verdade, quando passo por uma casa e vejo um pássaro numa gaiola. É uma das imagens mais tristes que existe. Me dói mesmo!

arte de T.d'B.

miados na rua

enfrenta um cachorro preto

o gato valente


Hg – Que fatos curiosos você tem pra contar para nossos leitores, envolvendo a gataria?

T. d'B.: Acho que começou pela palavra, com a expressão Ein Katz! Pois minha avó materna, nascida na Alemanha, nunca falou muito bem o português e essa expressão ainda é comum entre os imigrantes e descendentes germânicos no Sul. A tradução seria “Um gato!”, mas quer dizer o equivalente à “Uma ova!” ou “Uma ova que vai!” Nas muitas casas em que morei – mais de dez cidades - sempre havia algum gato, geralmente era de minha irmã. Havia também algum cachorro sempre, geralmente de meu irmão, algum papagaio e outros pássaros canoros que meu pai criava, lembro ainda de um porquinho-da-índia e até um cavalo marchador, o Zaino. Mas, o Missian, por exemplo, era um bichano branco-amarelado dos mais folgados. Com seus olhinhos azuis, esperava minha irmã pegar no sono, subia na cama como quem nada queria e se aninhava no ombro dela, veja só. Uma grande gata branca, com uma manchinha cinzenta, certa vez deu à luz três filhotes, dentro da caixa de lenhas, sob o fogão. Outro que apareceu e ficou foi um gato peludão e agressivo, que os vizinhos diziam que era cruza com gato-do-mato. Esse nunca deixou muito que o tocassem e era do tipo pegador de ratos, atacava galinheiros, enfrentava cachorros, uma fera. Como eu desenhava desde criança, esses gatos, pelo fato de ficarem quietinhos, serviam de modelo para meus desenhos muitas vezes. Mas meu preferido ainda é o Garfield, pois até fiz várias estampas dele para uma empresa de Cama Mesa e Banho. Atualmente curto um casal de gatos, que vive pelos telhados ao redor da casa em que moro, aqui em Maceió. Ele, um gato grande, cinza-escuro, meio paradão... sempre na dele. Ela, cor caramelo e marrom, de olhos esverdeados, muito bonita. Ela brinca mais, salta nos muros, se espreguiça, mia, entra na casa e até provoca ele de vez em quando! Nas artes, sempre curti os gatos pintados pelo mestre Aldemir Martins. Na literatura, é inesquecível O Gato Preto, de Edgar Allan Poe. E no cinema, é antológica a cena com o gato em Ghost, Do Outro Lado Da Vida. Há também um gato numa das cenas mais divertidas da história do cinema, a cena final do filme Homens de Preto, onde finalmente ficamos sabendo o que é o universo!


arte de T.d'B.

uma gata preta

namora um gato branco

numa tarde cinza


Hg – Dizem que os gatos não estão nem aí para nós que os amamos tanto, você concorda com essa afirmação?

T. d'B.: Essa frase deve ter sido dita por algum cachorro ciumento! Ou alguém que estava tendo um dia de cão! Bem, vou fazer de conta que entendo do que estou falando, respondendo o seguinte: ora, nossa relação com os bichanos vem de milênios e eles estão presentes em quase todas as culturas. O fato é que nossos amiguinhos felinos foram se achegando e criaram essa relação afetiva, mas de contida cumplicidade. E já pensou que sem graça seria se eles chegassem miando alto, babando e abanando o rabo! A questão é que devemos respeitar sua natureza de animal territorial, devemos aprender com sua postura reservada, com sua atitude discreta e sua indefectível elegância. E são sim muito afetivos. A gatona branca, acima citada, adotou nossa família quando moramos em Celso Ramos, quase na fronteira do Rio Grande do Sul. Naqueles invernos com frio abaixo de zero, costumávamos tomar chimarrão, junto ao fogão-à-lenha, e ela vinha se recostar em nosso pés, como que pedindo um carinho, ou, sem a menor cerimônia, pulava no colo e por ali ficava, numa boa e adorava uns afagos. E exatamente porque não tem nada a ver com a pergunta, acabo de lembrar agora do Romero, um músico argentino e muçulmano que vive em Blumenau, e criava no sótão do estúdio mais de trinta gatos. Uma beleza aquela “gatalhada” toda! E em certas literaturas esotéricas, dizem que os gatos são o estágio mais alto na evolução animal e o gato siamês, o mais evoluído de todos.

arte de T.d'B.

dois gatos pintados

desafinam violinos

concerto noturno


Hg – Aproveitando para falar de gatos e haicais, fale um pouco da tua relação com essa forma de poesia.

T. d'B.: Meu contato com o haicai foi quase inevitável, pois morei muitos anos na germânica cidade catarinense de Blumenau, uma cidade infestada de haicaístas, por incrível que pareça. Alguns dos meus prediletos são Nassau de Souza, Teresinha Manczak, Suzana Mafra, Margit Didjurgeit, Edith Kormann, Luiz Eduardo Caminha e Isnelda Weise, que é também dona da belíssima gata Sarah. Mas o destaque mesmo fica por conta de Martinho Bruning (em memória), com mais de dez livros publicados: extraordinário haicaísta, filósofo zen, foi amigo de Mário Quintana, mas hoje está injustamente esquecido e ainda com vasta produção inédita. Além disso, quando estudei as formas-fixas de poemas (isso foi no milênio passado, viu!, mas bem depois de Bashô!), tive que estudar também o haicai, pois ministrava oficinas literárias. Daí a praticá-lo foi um pulo, o pulo do gato, ou o salto de uma rã... Em 2.000 d. C. publiquei Olho Zen, meu livro de haicais. Minha opção foi e continua sendo pelo haicai tradicional, com direito a kigô e tudo mais, pois tenho origens rurais, digamos assim, vim de Brunópolis, planalto catarinense, terra da neve, e na infância principalmente, tive muito contato com a terra, a fauna e a flora, e essas vivências telúricas de alguma forma aparecem em meus haicais.

Concluo essa resposta com uma imagem para haicai; haicai que não escrevi: “indo para a escola numa manhã nívea, com neve quase na altura dos joelhos, a rua toda branca, encontro um gato branco que ficou me fitando, fitando” ...

arte de T.d'B.

neve na cidade

miava o gato branco

e ninguém o via


Hg – Na tua percepção, quem são os haicaístas que você aprecia e recomenda para os leitores do blog Haigatos?

T. d'B.: Matusuô Bashô, Kobaiashi Issa e Yosa Buson são fundamentais!

Digo isso pois releio esses caras e sempre aprendo com eles. Bashô sempre me mostra a essência do haicai. Issa me ensina que a emoção pode e deve estar nesses versos e Buson nos avisa da possibilidade de brincarmos com a linguagem, uma coisa, aliás, bem brasileira. E gosto da turma de Curitiba, cidade em que morei também: Helena Kolody, Paulo Leminski, Alice Ruiz, Andréa Motta, Marilda Confortim e até um pseudo-curitiboca que morou por lá e hoje tem um blog de haigatos... Mas leio também Teruko Oda, Masuda Goga, Paulo Franchetti, Aníbal Beça, Nenpuku Sato, Leila Míccolis, Benedita Azevedo, Débora Novaes de Castro, Ricardo Silvestrim e aquela galera dos grêmios de haicais em São Paulo. Depois tem toda uma turma que a gente vai trombando nos blogs e comunidades da vida. A maioria muito fraquinhos ainda, mas estão praticando e desenvolvendo os haicais urbanos, com outras temáticas e inovações...

Nessas leituras vamos encontrando pepitas inesperadas, como o haicai de Mário Quintana, sobre um grilo. Um haicai de Octávio Paz, sobre um peixe, para mim, o mais belo haicai já escrito. E, surpresa das surpresas, lendo a obra completa de meu autor preferido, Jorge Luís Borges, dou de cara com uma série de haicais dele. Mas como o haicai tem dezessete sílabas, Borges, que era chegado em matemáticas e simetrias, escreveu então exatos dezessete haicais! Menciono “esses caras” porque o haicai algumas vezes sofreu algumas invencionices aqui nos tristes trópicos, já tendo chegado com título e rima, pelas mãos do modernista Guilherme de Almeida. O Leminski também cometeu uns rimados, mania que ainda encontra adeptos. E há o estranho caso da transcriação concretista que o Haroldo de Campos fez do haicai da rã, o mais famoso dos haicais.

Penso que isso tudo tem a ver com nossa vocação antropofágica, assimilamos, devoramos, o que é de fora e reapresentamos de uma forma mais interessante. Como as pizzas brasileiras, que dão um show nas italianas. Agora, esse papo de recomendar autores não é comigo não, recomendo logo então que leiam o ótimo livro sobre haicais escrito pela Olga Savary ou façam uma oficina com a Alice Ruiz. Não recomendo autores especificamente porque acho que essas coisas são sempre uma descoberta pessoal, prefiro apenas desejar que cada um tenha boas surpresas pelo caminho, até porque era isso um pouco do que Bashô buscava em suas peregrinações.



arte de T.d'B.

na caixa-de-lenhas

a gata branca deu cria

gatinhos em cores


Hg – Nós percebemos em você, um verdadeiro mestre da concisão e da limpeza estética. Você levou isso ao haicai ou o haicai é que te deu essa percepção?

T. d'B.: Se essa concisão toda fosse mesmo verdade, não teríamos aqui essas respostas tão prolixas, hehe! Mas para os que aturam minhas tagarelices verborrágicas e acompanharam até aqui, posso dizer que de fato essas são características que algumas pessoas identificam em minha obra visual e também na produção literária. Vez em quando me dizem ou escrevem coisas assim. O fato é que quando o haicai apareceu na minha vida, eu já vinha desenvolvido uma linguagem em desenho, pintura e um pouco de fotografia experimental, sendo que essa concisão, a idéia de síntese, ou o rigor, como prefiro dizer, já apareciam nesses trabalhos, não como premissa, mas como resultado. Talvez por isso a identificação com esse poemeto nipônico tenha sido imediata. Foi amor ao primeiro verso com essa “japinha”!

Nessas questões de concisão, também abordadas por vários grandes escritores, penso que há um conceito que serve para todas as expressões estéticas: o ideal não é o barroquismo, ou o minimalismo, nem dizer o máximo com o mínimo, digo que o ideal é apenas dizer o necessário. Fácil de dizer, difícil de fazer, como se vê nessas respostas! Aliás, equilíbrio, em suas várias possibilidades, é outra lição que a gente aprende com nossos amiguinhos felinos.

arte de T.d'B.

numa colcha azul

fecham-se uns olhinhos verdes

gatinho amarelo


Hg – Como você funde na tua linguagem estética, tantas técnicas variadas em uma produção que parece não linear. Isso é inquietação?

T. d'B.: De fato essa produção variada não parece linear e a boa notícia é que de fato nunca pretendeu ser e espero que nunca seja. Antes eu até tinha uma desculpinha meio esfarrapada: o fato de ter começado como desenhista têxtil e ilustrador em agências de publicidade. Essas atividades pedem que nos tornemos versáteis. Meus trabalhos no mundo da moda sempre exigiram polivalência. Embora na produção artística, por ser mais lúdica e não compromissada com resultados comerciais, nada me impede de variar, de desafiar meus próprios limites, que são muitos. A gente sempre quer saber o que há por detrás do horizonte.

No meu caso, sempre trabalho muito o conceito de alguma proposta estética e depois é que parto para a técnica, o suporte, a forma e o meio. E nessa parte procuro estudar e aprender ao máximo, para que a criação em si, seja visual ou literária, encontre o veículo adequado para ser apresentado ao público. Acho que é por isso que os trabalhos em geral acabam sendo seriados. Quando estudei labirintos, não fiz apenas um, fiz trinta. Quando desenvolvi meu primeiro ideograma, acabei fazendo mais de cinquenta. Mesmo assim, há um fio condutor que liga todos os trabalhos, há uma identidade que transcende as técnicas e linguagens e amarra toda essa produção. Se não for essa inquietação, mencionada na pergunta, talvez seja falta de acomodação. De qualquer forma acho que tem a ver com esse nosso tempo de tantas pluralidades.

Se a gente não pode ter sete vidas, nada impede de tentarmos diversificar a única que temos. Ops, acho que vi um gatinho...

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no site de Tchello d’Barros

Entrevista feita por Jiddu Saldanha jidduks@uol.com.br www.jiddusaldanha.com

Rodrigo de Souza Leão (4 Novembro 1965 – 2 Julho 2009)

"Escrever foi o que me sobrou. De tudo que tive, foi o que me restou a fazer." Rodrigo de Souza Leão

Rodrigo de Souza Leão (4 Novembro 1965 – 2 Julho 2009)



Rodrigo Antonio de Souza Leão nasceu em 4 de novembro 1965. Formado em jornalismo, tem poemas publicados no "O Correio das Artes", revista Babel e fez parte da I Mostra de Poesia Carioca. É autor de vários livros em formato pdf (e-book/Virtualbooks). Finalista do Prêmio Uapê/2001. Consta da antologia Na virada do século – Poesia de invenção no Brasil. Tem resenhas e reportagens publicadas em O Globo e Rascunho (Paraná).

Graduado em jornalismo no ano de 1988, Rodrigo só pôde exercer plenamente a função de repórter dez anos depois de formado. Um acidente de carro tirou-lhe momentaneamente do trilho jornalístico. Durante o período de recuperação solidificou a sua formação na área de humanas. Foi colocando os vagões em ordem e escrevendo seu romance Carbono Pautado, revisado pelo escritor Luiz Antonio Aguiar.

Mas antes do acidente, nos anos oitenta é que começa a surgir espaço para a arte na vida do jovem. É na efervescência cultural daquela época, em meio a aurora do rock Brasil, que começa escrevendo letras para o grupo punk Eutanásia. Não demora muito e forma com João Athaide, o grupo PátriArmada - próximo ao estilo new wave e ao pós-punk. Participa da cena carioca. Faz apresentações nas danceterias Metrópoles, Circo Voador, Let it Be, Made in Brazil.

Participa como vocalista e letrista de outras bandas como Morganas, Ensaio a 4.Assina seu primeiro direito autoral em 1988. A música se chama Esquina do Pecado e tinha a co-autoria de André Trigueiro e Billy Brandão, na ocasião, bateristas e guitarristas da banda homônima ao título da canção.

.Estuda canto lírico no conservatório Villa Lobos, com o tenor Paulo Barcelos, a quem deve a sua formação musical. Estuda e aprende a gostar da música erudita também.Começa a trabalhar na SASSE A Seguradora da Caixa. Trabalha na Assessoria de Imprensa e no setor de Marketing.Concilia estudo/trabalho/música. É convidado a participar da equipe do programa Informe Imobiliário,na TV Corcovado, canal 9, Rio de Janeiro.
Assume as funções de editor e repórter.

Em 1989 sofre o acidente de carro, assunto que ainda retine no interior do jornalista e vibra de forma estranha dentro do poeta. Tanto que detesta falar sobre o passado.

A recuperação é lenta. Há pouca melhora até 1994 quando volta a escrever. Ressurge das cinzas. Fênix? Nasce do zero. Ele ainda é o "garoto" que começou a escrever em O Preto no Branco, jornaleco do colégio Brasil América, que fazia oposição ao presidente do grêmio e não menos amigo Marcelo Paixão.Conclui (em 1995) Carbono Pautado. No mesmo ano compra um computador e ingressa na internet, ocasião em que estava surgindo o Poesia Diária, de Cláudio Alex. Trabalham juntos.

Cria o CAOX, sítio cibernético e o Boletim do Caox, um e-zine dedicado a veiculação de poesia na web.Em 1996 nasce o Balacobaco, entrevista.Soares Feitosa disponibiliza no Jornal de Poesia as entrevistas de Rodrigo de Souza Leão. No mesmo ano tem poemas publicados no O Correio das Artes - o suplemento cultural mais antigo do Brasil.

Em 1997 participa e ganha um concurso no programa Esporte Real.Seu soneto é lido por Armando Nogueira na TV. Ainda no ano em questão, Affonso Romano de Sant'Anna faz uma crônica, publicada no jornal O Globo, sobre o poema Palmas, onde Rodrigo mostra a indignação diante da realidade brasileira.
Em 1998 é classificado e participa da I Mostra de Poesia Carioca. Publica o livro de poemas Retalhos.

Tem seu trabalho reconhecido em colunas como a do Gravatá e na Revista da Internet.Cria o LERo e o Professor Poesia. Ambos destinados à divulgação de poetas da internet.É o repórter do Conversa aos Domingos. Desdobramento do seu trabalho no PD, agora junto com Asta Vozondas.Rompendo o século, Rodrigo participa da criação da Revista Agulha.
Edita quatro números junto com Cláudio Willer e Floriano Martins.

Em pleno ano 2000, suas atividades atuais são ligadas ao seu sítio Caox, onde podemos encontrar poemas em mp3, ensaios e entrevistas com grandes nomes da literatura brasileira. Continua como compositor.Trabalha no Jornal Rascunho, do Paraná, até abril,como entrevistador.É convidado por Nara Gil para trabalhar no site do Gilberto Gil.

Recebe a menção honrosa classificando-se entre centenas de poetas no prêmio UAPÊ, divulgado pela REVISTA CULT. È publicado na Revista da Uapê.Tem 12 e-books de poesia na VIRTUALBOOKS.

É convidado para antologia poética do site poetry.com.Publica em papel Há Flores na Pele, Editora TREMA.

Suas entrevistas estão pelos diversos sites de poetas que entrevistou, cantores e artistas em geral.

Trabalhou no Balacobaco onde recebe auxílio luxuoso da webdsigner Andréa Augusto.
Conta da antologia Na Virada do Século - Poesia de Invenção no Brasil, organizada por Frederico Barbosa e Claudio Daniel.

Faleceu no Rio de Janeiro, no dia 02 de julho de 2009, de ataque cardíaco, aos 43 anos de idade.

Sobre o seu trabalho poético, Frederico Barbosa se manifesta: “(...) Em tempos de poesia rala, descritiva e intelectualóide, a poesia de Rodrigo de Souza Leão é um antídoto perfeito. Linguagem densa e enxuta a serviço da emoção mais crua. Impossível ler sem sentir um soco no estômago. Impossível não se impressionar. E Rodrigo convoca Rimbaud, Baudelaire, Drummond, todos relidos à luz de nossos dias, todos fazendo sentido. Não estão lá apenas para ostentar conhecimento: significam! O livro se fecha com o seu "resumo" : pulei / de uma janela / deitada // andei / na nata iceberg / do leite // caí / de pára-queda / no nada // subi / cavando / com enxada". Em resumo, é preciso que se conheça a poesia de Rodrigo de Souza Leão. Poesia rara que se faz sentir e que sobe, "cavando / com enxada" dentro do leitor”.

Já Antonio Carlos Secchin assim se expressou diante da poesia de Rodrigo Souza Leão: “é necessário distinguir a necessidade intrínseca de expressão (que pode demandar variadas formas) do virtuosismo verbal; no seu caso, a meu ver, convivem ambas as vertentes. Metáforas originais, arraigadamente pessoais (o melhor de sua poesia), ao lado de certas facilidades retóricas, como por exemplo o fluxo próximo ao surrealismo e a insistência escatológica,”

Produção Literária :

Em papel:

Retalhos (Ed. PD) e Há Flores na Pele (Ed. Trema e Ed.Manufatura).

Formato e-book:

XXV Tábuas
No Litoral do Tempo
Síndrome
Impressões sob Pressão Alta
Na visícula do Rock
Miragens Póstumas
Meu primeiro Livro que é o Segundo
Uma temporada nas Têmportas
O Bem e o Mal Divinos
Suorpicios Mind
Omar

Ainda em home page:

A paz amanhahoje
Já prontos faltando digitar:
Aparelhos, Poemas Longos, Poemas para Sylvia,
Poemas para Bruno, 1 litro de loucura e 500 gramas de razão, Antígona 6, Poemas Avulsos e Poemas para Marina (Livrinho infantil lindinho).

Romances finalizados:

Memórias de um Auxiliar de Escritório (Carbono Pautado) TEXAS

Fontes:
Luiz Alberto Machado
Virtual Books

Rodrigo de Souza Leão (O Escritor em Xeque)



Com um texto atraente e incômodo, Rodrigo de Souza Leão afirma sua condição: poeta. Sua prosa está contaminada de poesia.

No livro Todos os cachorros são azuis, o autor narra, através de uma experiência autobiográfica, a trajetória de um homem internado no hospício. E destaca três momentos da vida do personagem – infância, adolescência e fase adulta – para costurar uma narrativa marcada pela fragmentação do ser humano, característica que dialoga com a produção de alguns autores contemporâneos.

Não leia o livro à espera de linearidade, pois é justamente a ausência dela que prende o leitor. A escrita de Rodrigo torna-se mais valorosa quando lembramos que trata-se de uma autor esquizofrênico – como ele gosta de deixar claro. O escritor tem a generosidade de mergulhar no seu rico inconsciente e nos apresentar personagens que não conseguimos enxergar em nosso cotidiano.

Personagens delirantes apresentam momentos de lucidez. Rodrigo durante a entrevista concedida em sua casa, na Lagoa, apresentou o avesso de sua criação: lúcido com emocionantes instantes de delírio.

Ler esta entrevista e os livros do autor é abrir uma janela a inúmeros estados de consciência, mergulhar no desconhecido, enxergar através de uma lente azul – como propõe o narrador. Desejo que Rodrigo Souza Leão tenha sempre facilidade para publicar seus escritos; os leitores agradecem.

Por que o título do seu livro é Todos os cachorros são azuis?

Rodrigo Souza Leão – Na minha primeira infância eu tive um cachorro de pelúcia azul. Depois esse cachorro sumiu e nunca mais eu vi. É forte lembrança desse tempo. Como o livro fala de três fases da minha vida, resolvi fazer o link com minha infância. Mas nenhum cachorro é azul, é bom deixar claro. Só os cachorros de pelúcia são azuis.

Você tem alguma cor predileta?

Rodrigo – Eu gosto de azul e preto.

Você escreve prosa e poesia. Como surgiu seu interesse pela Literatura?

Rodrigo – É uma história longa. Você tem tempo?

Sim, pode falar.

Rodrigo – Eu comecei escrevendo poesia. A Suzana Vargas foi minha professora na Estação das Letras. No meu primeiro dia de aula, ela pediu que os alunos escrevessem um texto para ser comentado. Mas meu texto não foi escolhido para ser lido. Fiquei muito triste. O texto era assim:

a bomba é a solução / pra essa situação / pra crise geral / pro imposto territorial

Fala dos problemas políticos do país. Depois virou um hino punk através do grupo Eutanásia, onde meu irmão tocava bateria. Meu irmão me roubou essa parte da letra e colocou na música dele. Eu nunca quis ser escritor, meu plano era ser vocalista. Na década de 80, tive uma banda chamada Pátria Armada. Fizemos show no Circo Voador, na Metrópolis, no Made in Brazil – casas de shows da época. Minha meta de vida era ser músico.

Você toca algum instrumento?

Rodrigo – Eu toco um pouco de violão, mas só para compor. Minha voz fica boa impostada, perdi muito poder vocal por causa dos remédios que eu tomo.

Porque você toma os remédios?

Rodrigo – Para controlar o meu distúrbio delirante, minha esquizofrenia. Aos 23 anos tive um sério problema, identificaram a esquizofrenia. Hoje em dia usam muitos eufemismos para essa doença.

A Dra. Nise da Silveira batizou a esquizofrenia de ‘inúmeros estados do ser’...

Rodrigo – Nise da Silveira é maravilhosa, uma mãe. Mas voltando aos 23 anos: Tive um problema sério quando trabalhava na assessoria de imprensa da seguradora da Caixa Econômica. Foi uma crise de estresse muito elevado. Eu já era esquizofrênico, mas nunca havia manifestado a doença. Aos 15 anos, eu achei que tinha engolido um grilo – esse episódio está no meu livro. Aos 23 anos, no dia 03 de setembro de 1989, eu fui internado pela primeira vez, se não me falha a memória. Fui internado numa clínica, que não vou dizer o nome para não ser processado. Me colocaram camisa de força, me jogaram num cubículo e me deram um ‘sossega leão’. Mas o hospício em si não é a pior coisa do mundo. Porque, geralmente, não se sabe lidar com a loucura. Para família é muito complicado, ela se ver impelida a internar. O louco quebra a casa toda, faz um monte de merda, como aconteceu comigo na segunda internação. E pra onde você vai mandar esse cara? Eu sou a favor da luta antimanicomial. Acho que manicômio não resolve o problema de ninguém, só piora. Aqui está meu irmão, que é bipolar de humor, para comprovar. Na minha casa há histórico familiar de problemas mentais. Ele teve duas internações, na segunda vez ele ficou totalmente fora de si.

Se pudesse caracterizar o estado mental em que se encontra, o que diria?

Rodrigo – Eu falaria que eu sou esquizofrênico. Isso quer dizer que sou uma pessoa que necessita de certos cuidados: preciso tomar remédios específicos, viver uma vida diferente das outras pessoas e conseguir viver dentro das minhas ‘nóias’. Tenho que saber que a minha paranóia é paranóia e aprender a conviver com ela. A palavra-chave é convivência. É a convivência com a diferença. O meu ser é diferente dos outros. O esquizofrênico tem que ter uma sensibilidade para entender que é diferente. E sobre os eufemismos, isso é besteira. Falam “clínica” ao invés de “hospício”.

Não é difícil falar e escrever sobre doença?

Rodrigo – Hoje em dia é tranqüilo. Mas teve um tempo em que eu nem tocava no assunto. Até começar a minha relação com a internet eu não falava da doença. Escrevo mais poesia do que prosa. O meu primeiro livro chama-se Há Flores na Pele, só há um poema que fala de loucura. Eu falo da doença porque nunca gostei de psicólogos. Psicologia não resolve nada. Você fica batendo papo, conversando e nada. Fiz análise dos 12 aos 18 anos e não resolveu nada. Eu já tomei eletrochoque, mas com sedação. E esse eletrochoque é muito bom porque melhora muito o doente. Sério! Não é aquele eletrochoque tenebroso que era aplicado no tempo da Dra. Nise. Aquilo era um absurdo. Quem tirou o meu irmão da fase ‘abobalhado’, durante a crise psicótica, foi esse eletrochoque.

A arte tem um papel importante na sua vida. Certo?

Rodrigo – Justamente. Eu comecei a pintar há pouco. Mas escrever é uma coisa que vem. Eu só comecei a falar após a minha segunda internação. Fui internado duas vezes em 1989 e 2001, acho. Sou péssimo com datas e números, não sei nem meu telefone decorado. Essa segunda internação foi difícil, traumática, mas foi muito boa pra mim. Eu conheci lá dentro um cara chamado Gilberto Sabá, que foi guitarrista do Serguei, e gente tocava o terror. Ele que fez aquela música: ‘Toca um, toca dois, toca três. Toca, toca, toca rock and roll...’ A gente arrumava um violão e tocava para maluco dançar. (RISOS) Eu e ele éramos as pessoas mais lúcidas. Essa clínica onde fiquei era muito bonita, cheia de flores e árvores. Costumo dizer que hospícios são lugares tão bonitos que lembram cemitério. Eu ficava muito tempo fora do quarto vendo a paisagem, vendo a copa das árvores e escrevendo algumas coisas.

Sua prosa me lembra a poesia da Stella do Patrocínio. Conhece?

Rodrigo – Sim. Uma louca, lançaram um livro pela editora Azougue. Isso acontece porque a loucura é igual para todos. O bipolar de humor tem momentos de euforia e depressão, com momentos tristes e maravilhosos. Se o bipolar tomar remedinhos, como Lithium e Haldol, ele consegue se curar em longo prazo. A cura não é imediata porque precisa da conscientização da doença. A pessoa que tem distúrbio delirante acha que está sendo perseguida por agentes e policiais. Você acha mesmo que está sendo perseguido! Eu nunca tive visões. Ou melhor, tive visões quando fiquei uns cinco meses sem comer em casa porque achava que estava sendo envenenado pela minha família. Eu só comprava comida fora, fiquei muito tempo sem dormir.

(BRUNO, IRMÃO DE RODRIGO, SE APROXIMA E COMEÇA A PARTICIPAR DA ENTREVISTA)

Você tem uma lucidez muito forte em relação a isso.

Rodrigo – Não sei se é lucidez ou excesso de sofrimento. Eu sofri muito com minha doença, só eu sei o quanto eu sofri. Meu irmão também sabe.

Bruno – Sou assessor dele.

Rodrigo – Ele é meu assessor para assuntos estratégicos. (PAUSA) O sofrimento fez com que eu tivesse um insight. Mas minha vida tem muitas limitações, por exemplo, não saio de casa, sou recluso. Tenho medo de ser perseguido por agentes. É uma coisa absurda. Você está vendo um cara lúcido dizer que tem medo de ser perseguido por agentes. Mas essa é a minha doença. O que eu posso fazer?

Bruno – Quando arranja uma namorada ele sai. Pra ir ao motel...

Rodrigo – Só saio um pouco quando arranjo uma namorada.

Você namora muito?

Rodrigo – Namorei muito até os 23 anos. Eu era muito bonito, mas não sou mais por causa dos remédios. E não vejo no relacionamento a solução para os meus problemas. Se eu quiser ficar com uma garota, ela vai ter de se adequar muito a mim. Porque o problemático da relação sou eu. É difícil conciliar uma relação com alguém que não pode sair. Gosto de ficar na minha casa vendo filme e jogos de futebol. Sou 'flamenguista doente'. Hoje em dia as pessoas só querem ir para festas e barzinhos. Eu não posso beber porque tomo remédio tarja-preta, tomo Haldol.

Bruno – Mas faz sexo...

Rodrigo – Mas isso não tem contra-indicação. Eu já tomei muitos remédios. Mas me dei bem com esse remédio, embora dê tremor, mão fria e salivação.

Você é formado em Jornalismo.

Rodrigo – Sim. Me formei em Jornalismo pela Faculdade da Cidade (atual UniverCidade). Eu não consegui me formar por uma faculdade federal, mas tive bons professores: Fernando Muniz, Lúcia Padilha, Ítalo Moriconi... Tive uma formação muito interessante. Meu lance nunca foi jornalismo, eu queria ser locutor de rádio. Ouvi muito a Rádio Cidade e a Rádio Fluminense com Maurício Valladares. Mas o que restou na minha vida foi escrever. O que sobrou? Escrever. Eu já fazia letra de música, depois passei a escrever poemas. Acredito que algumas letras de música são poemas.

Há letristas que são poetas.

Rodrigo – Sim. Caetano Veloso, Arnaldo Antunes, Gilberto Gil e Chico Buarque são maravilhosos.

Você sempre gostou de ler?

Rodrigo – Não. A leitura foi um hábito que adquiri após minha primeira internação. Eu fiquei muito tempo em casa e devorei Proust e James Joyce. Li muito o Rubem Fonseca, gosto muito dele.

Você tem um livro de poesia chamado Carbono Pautado – memórias de uma auxiliar de escritório.

Rodrigo – Sim. Mas esse livro só foi importante para que eu pudesse ver como foi a minha vida.

Sua escrita é muito fragmentada, uma característica muito presente no texto dos autores contemporâneos...

Rodrigo – Nós vivemos em tempos esquizofrênicos. Muita gente tem depressão ou síndrome do pânico. É uma sociedade que está doente porque dá valor ao que não se deve: o dinheiro. O ser humano viveria muito mais se parasse com essa babaquice de querer dominar o outro.

No seu livro, Rimbaud e Baudelaire são influências?

Rodrigo – Mais Rimbaud do que o Baudelaire. Li a obra completa do Rimbaud, que é bem curta. Gosto muito da "Canção da Torre Mais Alta":

Juventude preza / A tudo oprimida / Por delicadeza /Perdi minha vida.

Acho essa poesia sensacional! O Rimbaud é muito presente na minha vida. Eu tive muitos livros. Mas teve uma época em que eu achei que ia morrer, então fiz uma grande liquidação de livros. Peguei todos os meus livros, separei, dei os que eu queria dar e vendi todo o resto. Dei um disco incrível do Roberto Carlos, Nas Curvas da Estrada de Santos, para um cara que estava num sebo.

Bruno – Meus discos do Iron Maiden foram juntos...

Rodrigo – É, os discos do meu irmão, que gosta de heavy metal. Eu só fiz essa grande liquidação porque eu achava que fosse morrer. Mas eu sobrevivi. A minha condição de vida é a seguinte: vivo o presente. Como estou vivo, faço um melhor dia pra mim. Eu não faço projeto a longo prazo. No edital da Petrobras eu deixei claro que o meu livro estava quase todo pronto e eles aceitaram assim mesmo. Mas o meu livro foi rejeitado pela Casa do Psicólogo. Eu pensei: Nem os psicólogos estão do meu lado? Logo na Casa do Psicólogo? Num lugar em que eu deveria ser tratado a pão de ló.

Mas você conseguiu aprovação na Petrobras.

Rodrigo – Esse projeto foi muito importante. Eu não tinha dinheiro para bancar meu livro. Apesar de viver nesse apartamento na Lagoa e parecer rico, não tenho muita grana. O dinheiro vai para serviços, remédios e outras despesas. Fui aposentado por invalidez aos 23 anos, não recebo muito. Eu consegui publicar graças à Petrobras e à 7 Letras. Mas no início a Petrobras não acreditou muito, mandaram duas psicólogas para me avaliarem. Elas diziam: ‘Ele tem problemas cognitivos, problemas X, problemas Y’. Foi ótimo porque depois dessa avaliação “não preciso” ter mais problemas.

Você é otimista em relação a sua carreira de escritor?

Rodrigo – Não. Mas acho que fiz um livro bom, intenso e mágico. Estou escrevendo outro livro: Tripolar, um livro de mais confronto com a linguagem. São três novelas que não se comunicam. Tenho uma postura positiva, mas não sou ufanista em relação a vida. Não acho que vou viver de literatura. Mas acredito no que eu faço. Vou ganhar prêmio? Isso é imponderável.

Bruno – Vai ganhar o Jabuti.

Rodrigo – Não vou ganhar.

O que é mais importante na sua vida?

Rodrigo – O mais importante, no momento, é eu não saber o que é a coisa mais importante na minha vida. É saber colocar importâncias variadas. É importante que eu continue estável e consiga viver o máximo de tempo possível.

Você quer viver muito?

Rodrigo – Não. Eu espero viver pouco. Se eu conseguir viver até 50 anos ficarei contente. Porque viver muito é para quem não tem problemas. Quando a pessoa tem muito problema é até melhor morrer cedo porque se livra um pouco dos traumas e angústias. Sou uma pessoa muito traumatizada. Mas feliz! Eu sou feliz. Posso dizer que sou muito feliz, mais feliz que a grande maioria das pessoas. Eu sou feliz. Eu não estou realizado porque ainda estou no meu primeiro livro. Estou na batalha para publicar um livro há muito tempo, desde os 27 anos.

Você acredita em Deus?

Rodrigo – Por muito tempo eu li Nietzsche: Assim falou Zaratustra. Li todos os livros de Nietzsche quando eu tinha vinte e poucos anos, eu adorava filosofia. Então a minha relação com a religião é mais calma. Eu rezo três orações antes de dormir, minha avó que ensinou: Oração a São Miguel de Arcanjo, Pai Nosso e Oração a Nossa Senhora da Cabeça.

Salve Imaculada, Rainha da Glória, Virgem Santíssima da Cabeça, em cujo admirável título fundam-se nossas esperanças, por sedes...

Agora está me faltando, não estou conseguindo lembrar.

Sem problemas.

Bruno – E ele vê a Igreja Universal do Reino de Deus, todos os dias comigo no quarto.

Rodrigo – Só vejo porque ele vê. Isso não tem nada a ver. Não vejo Igreja Universal.

O que é a morte?

Rodrigo – Eu torço para que exista algo além. Gostaria de ver o que as pessoas acham de mim quando eu estivesse morto. Sabe? A reação das pessoas. Para saber se meu melhor amigo iria chorar, se alguma namorada ia lembrar de mim, se meu livro ia vender depois de morto... Por que depois que morre todo escritor vende.

O que é loucura?

Rodrigo – Isso é engraçado. Porque quando se é um louco folclórico, cheio de indumentária e adereços – tipo Bispo do Rosário, Plínio Marcos, Gentileza –, aí ele é bem-vindo. Eu quero acabar com esse folclore porque eu me visto como uma pessoa normal. Não tem como definir loucura. Loucura é uma coisa perigosa de ser definida, por isso as pessoas falam tão pouco. As pessoas têm uma idéia mitificada da loucura, o Michel Foucault falava disso. Definir loucura é não saber como se está no mundo. Não posso crer que só existam loucos como eu, que têm noção do que é a doença. Têm loucos como o Bruno, que são menos capacitados a isso. E também têm os agressivos. Acho que os hospícios não deveriam misturar os loucos. Assim as clínicas se tornam um depósito de gente. Os oligofrênicos deveriam estar separados dos outros loucos. Eu não vou ser mais internado, eu acho. Vou ser internado só no cemitério do Caju. (RISOS).

O que é a vida?

Rodrigo – A vida é excepcional. É o lugar onde tentamos construir sonhos. Vida é algo que foi dado e só você pode tirar, se você se suicidar. Ou Deus, que também pode tirar. Mas nem sei se Deus existe. Eu sou meio revoltado com Deus. Por que eu fui nascer esquizofrênico? Por que eu não nasci mais alto como o fotógrafo (Tomás Rangel). Eu nasci com 1,70. Eu queria 1.85. (RISOS) Ramon também faz parte da família dos ‘gnomídios’. Você deve se achar um anão. (RISOS).

Por que escrever?

Rodrigo – Escrever foi o que me sobrou. De tudo que tive, foi o que me restou a fazer.

A escrita trouxe vida?

Rodrigo – A leitura me trouxe vida. Eu lia o Proust, anotava umas palavras num papelzinho e no final do dia fazia um poema. Saía uma coisa sem pé nem cabeça. Na prosa eu trabalho o psicológico dos personagens.
O que você diria para um jovem que deseja ser escritor?

Rodrigo – Primeiro: Viva ao máximo! O que importa são os momentos. Se o livro for rejeitado, não desista! Se você gosta de escrever, então escreva para você mesmo. Eu só fui publicado quando escrevi para mim mesmo.

Fonte: Entrevista concedida a Ramon Mello no Portal Literal

quarta-feira, 8 de julho de 2009

O (verdadeiro) Brasil na poesia de Costa Fernandes

LUSOFONIA


Adelto Gonçalves (*)

I

Ficcionista, ensaísta e poeta, Ronaldo Costa Fernandes (1952) é, sobretudo, lírico, como prova o seu último livro, A máquina das mãos (Rio de Janeiro: Sete Letras, 2009), o quinto de uma obra poética que está em construção, mas que já se afirma como uma das mais autorizadas vozes líricas da poesia brasileira contemporânea. Esse lirismo está presente também em sua produção ficcional, como sabe quem leu O Viúvo (Brasília: LGE Editora, 2005), um romance que só não obteve maior repercussão porque saiu por uma editora fora do eixo Rio-São Paulo, vítima que é o seu autor, como tantos outros, do desprezo que a grande indústria editorial devota à literatura brasileira sob o discutível argumento de que não vende.

(Essa mesma visão mercantilista não só impede a grande indústria editorial de perceber que a literatura brasileira não vende porque não é publicada como mata no nascedouro muitas vocações. E ainda leva à valorização daquilo que, embora venda, não presta: basta um figurão do show business escrever qualquer patacoada para que o “produto” logo ganhe foro de genialidade e páginas nas revistas e no espaço cultural dos jornais).

Se um poeta é aquele que sabe tocar o exato limite entre a falta e o excesso, a forma e o fundo, a linguagem e o conteúdo, o estilo e a temática, como bem observou o também poeta e crítico Hildeberto Barbosa Filho no posfácio que escreveu para A máquina das mãos, este poeta é Ronaldo Costa Fernandes que, acima de tudo, nunca perde a ternura que, afinal, é o material de combustão de que se faz a verdadeira poesia.

Quem quiser comprovar o que se escreve aqui que leia com atenção os versos que o poeta dedicou a dois amigos mortos. Um deles é aquele que em que rememora as últimas horas de Samuel Rawet (1929-1984), “sua angústia judia e imigrante”:

(...) Rawet morreu lendo, em sua cadeira de balanço

e lá ficou três putrefatos dias.

O gueto de Rawet era sua cadeira de balanço,

o menor gueto do mundo.

Ou, então, o longo poema que dedicou à memória do poeta Fernando Mendes Vianna (1933-2006), que faz lembrar Pablo Neruda (1904-1973) evocando a memória de um amigo em “Alberto Rojas Jiménez viene volando”, poema de Residencia en la tierra (Buenos Aires, Editorial Losada, 1976):

Por que não falas na tua última conferência?

Por que não gesticulas?

Tu, que te movias alvoroçado

como as pás de um motor

-- desligado, apenas a promessa de nau;

acionado, o furor dos pensamentos

em redemoinho.

Tu, gigante leve,

andavas mais perto das nuvens,

ao acreditar que a poesia era mitologia.

Que mito parou tua máquina de poetar? (...)

II

Como se vê, há em Costa Fernandes, como em todo bom poeta, a tentativa de reter o tempo e aquilo que se vive (ou viveu). Como se a vida fosse um filme cujas imagens pudessem ser retidas (congeladas) na memória e as pessoas pudessem ser revividas sempre que alguém acionasse uma máquina fantástica, tal como o poeta faz ao evocar no poema “La invención de Morel” a obra-prima do argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999):

Para onde irão as coisas acontecidas?

Por certo não devem estar só na memória

-- que é gelatinosa e tende à movediça régua,

que, em vez de precisão,

encurta o que é longo –

por certo devem estar paralisadas

-- é curvo o metro da razão –

em algum espaço que não acumula o que recolhe

nem apaga quando se desfaz,

nem se destrói ao morrer,

deve haver um cemitério de fatos,

lá, onde todas as coisas – esquecidas ou não –

perduram e se repetem.

Maranhense criado no Rio de Janeiro e radicado em Brasília, Costa Fernandes não só faz lembrar Neruda, mas também Fernando Pessoa (1888-1935) de “Tabacaria”, como se vê nos versos de “Delito do corpo”:

Por que certos amores

insistem em não envelhecer?

Por que alguns amores permanecem

como a mancha que nenhuma lavanderia apaga?

Não se vergam ao tempo

feitos de flandres humano,

não oxidante,

flébeis e olorosos

igual à matéria de jardinagem

que adubasse flores de carne? (...)

(...) Quem sabe algum dia

a loucura arranque

o que não ousa nascer,

o que sobrevive morto,

e o amor outra vez

se aliste na tropa do meu corpo?

O único crime que cometi foi a vida.

Essa marca de verdadeiro poeta Costa Fernandes já havia deixado em livros de poesia anteriores, como o livro-folheto de estréia Urbe (1975), que costuma renegar, Estrangeiro (1997), Terratreme (1998), Andarilho (2000) e Eterno passageiro (2004). Como observou Antonio Carlos Secchin no prefácio que escreveu para Eterno passageiro (Brasília, Varanda, 2004), há um lapso de 22 anos entre a estréia e a retomada poética do autor: nesse longo intervalo, ele construiu sólida carreira como romancista, tendo sido contemplado, inclusive, com o prestigioso prêmio Casa de Las Américas, por seu romance O morto solidário, traduzido e publicado em Cuba. Publicou ainda o romance Concerto para flauta e martelo (Rio de Janeiro, Editora Revan, 1997).

Ganhou vários prêmios, como o Guimarães Rosa e o da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Morou nove anos na Venezuela, onde dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros em Caracas. Publicou ainda o livro de contos Manual de tortura (Brasília: Esquina das Palavras, 2007) e o de ensaios A ideologia do personagem brasileiro (Editora da UnB, 2007). Na área de ensaio, publicou também O narrador do romance (Rio de Janeiro: Editora Sete Letras, 1996), prêmio Austregésilo de Athayde da União Brasileira de Escritores (UBE), seção Rio de Janeiro.

III

Como mostra o currículo, Costa Fernandes é ainda fino ensaísta, como se pode ver no texto “Considerações sobre um poeta: Lêdo Ivo”, publicado na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, ano XIV, nº 56, jul.-set.2008, em que estuda com profundidade o processo poético e bibliográfico de um dos maiores poetas brasileiros do nosso tempo. Sempre acusado de prolixidade, Lêdo Ivo (1924), no dizer de Costa Fernandes, é um poeta caudaloso, sim, porque tem o que dizer, ou seja, nele o excesso é virtude, exatamente o contrário dos concretistas que sempre foram econômicos porque não teriam muito a expressar.

As escarafunchar e buscar as linhas-mestras da poesia de Lêdo Ivo, como a recorrência da imagem escuridão-noite-lua, Costa Fernandes mostra que está longe de ser um poeta intuitivo, sendo antes um poeta cerebral, que sempre soube se munir de extenso arcabouço teórico e do itinerário poético de outros grandes poetas para mais bem desenvolver o seu ofício de artesão do verso, não fosse doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília (UnB).

Ao tempo em que dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros em Caracas, diz que constatou pessoalmente o interesse do leitor hispano-americano pela poesia de Lêdo Ivo, o que o levou a promover a publicação de uma coletânea dos seus poemas traduzidos ao castelhano. E o coloca no mesmo nível de Neruda, Nicolás Guillén (1902-1989), Lezama Lima (1910-1976), Octavio Paz (1914-1998), Mario Benedetti (1920-2009) e outros que fizeram uma poesia de tradição universal, mas igualmente de cunho latino-americano. Para ele, talvez seja a conjugação de “cerebralismo” e de uma dicção robusta que leve hispano-americanos a se encantarem com a poesia de Lêdo Ivo.

Costa Fernandes segue no mesmo caminho de Lêdo Ivo: faz uma poesia antenada com a tradição universal, mas profundamente brasileira, não porque busque imagens ou temas exóticos

ao olhos do leitor de fora (como aqueles quadros de borboletas que ainda se vendem em aeroportos e vendiam-se em lojas próximas ao porto ao tempo em que os turistas aqui chegavam de navio), mas porque a sua arte poética está contaminada pelo espírito terno e cordial do brasileiro comum que nada tem a ver com a violência de uma sociedade hoje refém de narcotraficantes e políticos corruptos.

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A MÁQUINA DAS MÃOS, de Ronaldo Costa Fernandes. Rio de Janeiro: Editora Sete Letras, 102 págs., 2009. E-mail: editora@7letras.com.br

Site: www.7letras.com.br

CONSIDERAÇÕES SOBRE UM POETA: LÊDO IVO, de Ronaldo Costa Fernandes. Separata da Revista Brasileira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, , nº 56, ano XIV, fase VII, jul.-set. 2008


(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br


Segue artigo publicado no jornal quinzenal As Artes entre as Letras, do Porto, nº 3, 1/7/2009, p.15.

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