sábado, 31 de maio de 2008

20 – A Dama do Metrô

Malu apenas agia conforme a ocasião propiciasse. Portanto não pensava muito no destino. Sendo assim, ao sair de casa todos os dias, se entregava sem medo das conseqüências. Se elas surgissem, o que sempre era provável, conseguia uma maneira de se safar delas. Havia nisso dois lados: o positivo e o negativo. No final pesava os dois lados e tirava o resultado que, quase sempre, era positivo. E naquele dia não foi diferente.

Otimista, sairá confiante recebendo o sol com alegria. A manhã estava clara e bonita.
Por coincidência, que só acontecem no cinema e nos livros ultra-românticos, e, também, sem que ela estivesse pensando, ao descer as escadas rolantes, cruzou com o loiro que subia.

- Nossa! De novo esse loiro, qual o nome dele mesmo?

Não lembrava.

- Esse loiro está infernizando meu desejo sexual. Da próxima vez vou segui-lo e, quem sabe, acontece alguma coisa interessante.

Fazer como no filme “Estação doçura”, com aquela atriz do filme “Bagda Café”, onde a personagem principal, se apaixona pela voz do operador do metrô. Primeiramente ela passa a pegar o metrô todos os dias no mesmo horário, depois, descobre os horários de entrada e saída, e, por fim, se envolve com o cara e acaba tendo uma aventura meio amarga. Um bom filme.
Porém Malu não tem os artifícios cinematográficos para fazer o mesmo. A única possibilidade seria, de um dia, seguir o loiro e, quem sabe, saber onde mora ou, onde trabalha. Aí sim, criar um esquema para envolvê-lo na sua trama sexual, é quem sabe...

01/11/06
pastorelli

quarta-feira, 28 de maio de 2008

mergulho

o que eu venho tentando lhes dizer
digo-o a mim todos os dias
com a serenidade de um silêncio agudo
que vibra a tênue mas resistente fibra
que tece a invisível malha da vida

cada um humano é um lago de águas turvas
que o vento da circunstância fere a superfície
sua face mais visível e inconstante
onde bóiam as paixões ligeiras
e navegam os dramas que nos aflige

é preciso descer ao fundo
além de onde a luz permite
onde tudo é absoluta calma
ao lodo denso que retém a alma
substância rica de que se nutre

só após este mergulho se compreende
que a força provem da massa escura
formada pelo acúmulo das experiências
que submergem na nossa inconsciência
quando, à nos olharmos, olhamos o mundo

restabelecido o perfeito equilíbrio
das partes todas de que somos feitos
nada mais há que nos transtorne
e o lago volta a ser o espelho
onde Narciso se admira e morre.




Fred Matos

Choveu Saudades

Hoje, resoluta, sentei no meio do quarto
abri minhas gavetas e tirei nossos retratos,
fui picando em pedaços, depois de tirar os laços
de todas as suas cartas e também dos recados.

Um a um os fragmentos fui jogando
na pequena fogueira que fiz.
Joguei os beijos e os abraços
joguei até um par de sapatos
joguei os lenços
(alguns de lágrimas encharcados)

E por um triz, quase que jogo a mim.

Então estinguiu-se a chama
sem que eu pudesse prever.
É que choveu dos meus olhos a saudade,
quando eu quis queimar você.

Asta Vonzodas
o cetro e o monastério
a Osvaldo L. Pastorelli

de pedra o grande castelo
de vez em quando se vê
entre os arbustos espreitando
os saberes das pessoas...
se o incauto viajante
pela estrada a sós divaga
decerto o contempla e larga
a vista em vão pois não vê
o que lhe esboça o semblante...
é um encanto que à vista
do leigo observador
passa por despercebido
falo de hercúleo mistério:
- o cetro e o monastério -
que o sábio tão logo vê...


mauricio rosa
à la Quintana


porque a vida é só isso:

um imenso bolo de acasos
polvilhado de poréns.


mauricio rosa

terça-feira, 27 de maio de 2008

o louco e o poeta

como não encontro
a palavra exata
a rima rica
o verso justo
que mais se ajuste
ao velho amigo
reencontrado,

recordo outras
já publicadas
que estão à mão
para abraçar-te
querido irmão:


o louco e o poeta


Para Mauricio Rosa de Almeida

no átimo de uma vida
traçada com o fio do acaso

na árdua estrada ilógica,
seguem, o louco e o poeta,

alargando as margens da rota.

vão, no limite que criam,
tornando concreto o fantástico,

semeando sonhos e alegrias,

mesmo com a alma em pedaços,

porque sabem que tudo é falso.


sabem que a vida é alegoria,

conhecem o sabor do fracasso

e que toda glória é vazia,
mas seguem: ampliando espaços

para uma nova teogonia.


Fred Matos

publicado em "Anomalias".
Editora Kelps

Setembro/2002



segunda-feira, 26 de maio de 2008

19 – A Dama do Metrô.

O que o destino estava lhe preparando? Acreditava em destino? Não sabia dizer. No entanto sempre ouvira dizer: quem planta colhe, isto é, não poderia deixar tudo a espera do destino, mesmo que ele já esteja traçado, isto é, que tudo o que ela esta passando, vivenciando já está determinado a passar. Mesmo assim, precisava mexer os pauzinhos, fazer acontecer, pois se não acontecesse não haveria destino, ficar a espera não era do seu feitio.



Malu pensou no loiro. Cruzara com ele duas vezes, será que cruzaria novamente com ele? Se isso acontecer não esperaria o destino comandar seus movimentos, ela que comandaria o destino, pensou resoluta.


30.10.06
pastorelli

Recado
Ao Fred Matos

© mauricio rosa

É um pequeno poema
Simples, diria, um rabisco
Sem rima nem escansão
Dedicado a ti, amigo...
Assustarás, zombarão
Dirão que é um escárnio
Dedicar isso a alguém
Querido, de velha data.
Mas, cá, lê-me até o fim
Que numa miúda nota
me explico ao poeta:
“este discurso é tão breve
De envergadura tacanha
Posto que é complemento,
Aposto ao grande apreço
Que te confiro faz tempo!".

cangalha

mas, jamais me perguntei
porque tenho apascentado esta manada
cujos olhos perfuram meus silêncios

gostava que não me apertassem o pescoço
nem que me exigissem manter limpos
os meus sapatos de mármore

mas nunca, jamais, nenhum pio

caminho ereto e sorridente como um asno
cuja felicidade é a ausência da cangalha

contudo, tenho intimamente gritado
que todos os meus sonhos se diluem
como a neblina após a alvorada

mas não

estão todos surdos
nunca serei ouvido
exceto na opacidade dos meus olhos
cobertos de musgos


Fred Matos

moenda

© mauricio rosa

feito de ocasos vadios o nobre bardo se vê
amontoando nos cantos versos paridos a sós,
buquês de angústia vestidos, coloridos caracóis
juntados num mar de sonhos e ofertados à foz!
que guarda essa alma infante além da dicotomia?
suores de outros tempos? a noite roendo o dia?
o barulho atroz do tédio? o coito da maresia
que náusea causa ao cérebro na forma de poesia?
que causa mais caberia nas coisas que o poeta
em transe enfim confessa qu’inda ontem existia?
que gesto divino encerra essa imensidão tão fria?
que razão ampara a morte? e a sorte? e o vão da Cria?
que olho vesgo o espreita quando acorda e se depara
com esse mundo vazio que se esconde atrás de nós?

sábado, 24 de maio de 2008

áries




quando nasci
meu pai plantou uma figueira

árvore que nunca mais vi

-




mas nenhum anjo louco
pousou na minha janela
ou qualquer andarilho pirado
parou diante do jardim
onde meu gado de osso colhia
o sumo das geadas


só por isso já valeria
e sei que por muito pouco foi assim


( )


minha mãe comemorava o próprio destino


meu pai tecia numa velha harmônica
um som de milonga que me partia em blues

era um dia azul e eu nasci

gremista roedor de unhas apaixonadamente
empenhado em sacudir as estrebarias
e libertar os bichos

cresci quando o silêncio era o preço da carne
na pajelança dos generais

suportei porque aprendi a voar

bem alto

alto

alto


(...)

até ficar com falta de

a
a
r
r

(ls - poema vermelho)

sexta-feira, 23 de maio de 2008

cinzel
a Manuel Rodrigues

mauricio rosa

afasto-me de mim ao fim da tarde
e atrás do horizonte longe vejo
o sonho esmaecido dormitando...
exangue, a seus pés sou eremita,
esquálida razão cerzida ao nada,
acaso que o universo regurgita!
se vago um dia fui pouco importa
hoje me alenta ver o vento à porta
humilde a sussurrar frases sutis:
voltaste viandante? que me trazes
além da gris saudade? solavancos?
de ti guardei os versos verdadeiros,
os outros, malformados, delirantes,
o tempo encarregou de derreter...

SAL

I. Prólogo do Sal

Pousa o sol, afoga o mar
Afaga em âmbar mãos trabalhadoras
A refletir carmins enquanto colhem
Em concha e precisão
O sal das águas.



II. Perdas

Há um mar solitário a navegar em si
Além do leste persegue o sol

Sem veias, sem veios, apenas correntes
Grilhões de luar e sal perdidos

Um mar perdido

Carência de sal



III. Esquecimento

Não há lágrima sem sal
Não há suor

Um mar sem sal não é doçura
É esquecimento



IV. O Mar e a Concha

Foi enquanto eu dormia
- disse o mar a uma concha
atenta -
Que me roubaram o sal.

A sabedoria da concha lembrou-o:
- Sempre haverá a lua.



V. O caminho (1º Canto do Mar)

Longo é o caminho que leva à verdade

Há que se lamber a terra
Com os pés nas nuvens

Buscar o sal é sustenir-se.



VI. O Mar e as Dunas

Ao encontrar as dunas
Quis saber o mar
O que as movia

- O vento é como um riso -
responderam vagas
e partiram.



VII. Peixes

No fundo do mar
Peixes de cores oníricas
Em convenção discutiam
Se sobreviveriam sem sal.

A velha e sábia baleia
Manifestou-se de pronto:

- Basta criarmos asas.



VIII. Ditado do Mergulhão

O mergulhão segue o mar
Sem esquecer das palavras
Que a mãe dizia em pequeno

“Atobá quando vê a vazante
evita de dar rasante.”



IX. Interlúdio I – Observatório

É do alto do horizonte
Que os olhos observam
A busca dos que perderam

Nas mãos em concha porta o sal
Nos lábios um sorriso



X. Caminhante solitário

Afastado do oceano
O mar sem sal se questiona
Em por quês e porquês.

Deixa atrás de si
Uma rosa em botão
Que não viu



XI. A Concha e o Mar.

A concha se abre e revela
Ao mar, conhecimento

“A dúvida
é o exercício da angústia”



XII. Pérolas de uma ostra

A palavra areia nem sempre encontra
Ouvidos em mim – disse a ostra
Agitando a maré.



XIII. A jornada (2º Canto do Mar)

Antes do primeiro passo
A inércia

Depois os percalços

Nenhuma busca começa no sonho.



XIV. O Fogo (3º Canto do Mar)

Com um cajado nas mãos e imponência
O fogo interpôs-se em meu caminho
Os olhos de malícia e luz.

Com um meneio de cabeça desviei:
Não era hora para lutas mas eu soube
Enquanto atravessava o caminho mais fácil
Que o reencontraria
Antes da morte.


XV. Mar conta estrelas

Cadente atravessa o céu
Rumo norte

Se busca raízes
É por que perdeu a liberdade
Ou a esperança



XVI. Pesadelo

Incontáveis vezes
Se repete
A queda

Um coração branco
Pulsa
E se desfaz ao toque

É sal

Uma baleia voadora
Encobre a lua

Baixa a maré



XVII. Interlúdio II – Velamento


A menina observa ao longe um sonho moribundo
Que em pseudopassos move-se em direção ao medo.

Surpresa percebe o reflexo da lua
A desenhar anéis nas cristas em ondas

Com o polegar e o indicador úmidos
Apaga a vela.



XVIII. Nuvens (4º Canto do Mar)

Longe dos pesadelos, as nuvens

Seus movimentos contam o futuro
Como folhas de chá no repouso
Da dança contemporânea

Uma delas – disfarce de coelho –
Em rápidos movimentos
Me disse de salto
Que haveria tempestade.

Fujo
Em direção a bonança.



XIX. Tempestade

Intempestiva a chuva lava o mar rompido
E como língua felina a lamber feridas
O cicatriza.

Não leva a dor
Que o tempo arde.

Mas ameniza.



XX. Vazios do sal

A ausência do sal é temperança
Sem tempero o que resta é parcimônia

A ausência de sal não é saudade
É vazio.



XXI. Penhasco e Queda (5º Canto do Mar)

A distância entre os passos é um salto
Se me precipito.

Toda queda é vôo
Livre
Se em mim mergulho.

Precipício me faz cachoeira
Pranto da montanha

Desmorono e me encontro na queda
Minhas próprias águas



Anderson Santos
(o destino do mar que perdeu o sal, sua história e seus (des)encontros seguem sendo escritos)

NINGUÉM SABERÁ

Julgo que aceita o fim a prazo,
essa manhã deserta de vestígios
que a neblina apagou, deixando o sol
ao casario branco da cidade.
Não se pode temer o tempo, disse-lhe,
e fui pensando
que o tempo não se afronta por renúncia
nem com os sucessivos fins de tarde
quando, por entre as folhas,
deixamos breves pistas nos passeios.
O coração cavalga
os ventos luminosos e devora
os anos à procura da alegria,
até que na manhã deserta
ninguém apure ao certo se vencemos,
se fomos derrotados
ou se deixámos na água lisa o verso:
rebentei o meu louco coração.

Manuel Rodrigues, © nd

quarta-feira, 21 de maio de 2008

impressões profanas
© mauricio rosa


penso que a prece é peso
nas almas vãs colocado
para que não se misturem
às castas do outro lado!
anjos, acho, são os sonhos
esquartejados, pedaços
de universos tristonhos
vagando num mausoléu!
Deus, deus é um mago silente
inventado meio às pressas
para defender o homem
de sua ausência perplexa...
e poeta eu sei, é um louco
angústia de deuses moucos
que nunca ouve o que fala
e reinventa o que vê.

allegro

as cordas do meu violão
tocam um só
sonolento acorde
só acordam
quando me acode
a lembrança do teu beijo

então elas toam desejos
numa melodia fantástica
que percorre toda a escala
em seqüência erótica
orgástica

ouço o timbre do piano
ouço a flauta de Atena
ouço a lira de Apolo
é perfeita a harmonia

a orquestra toca teu nome
no allegro da sinfonia.


Fred Matos

poesia visual - pipa à noite


poema - especiarias




especiarias


cravo
cá nela


AL-Chaer



terça-feira, 20 de maio de 2008

a invenção do amor

falávamos das montanhas
da profundidade dos vales
da densidade dos metais

falávamos das diferenças
dos mares que nos separam
de barcos chegando ao cais

falávamos dos hiatos
das hipóteses plausíveis
das órbitas siderais

falávamos com tom grave
das nossas responsabilidades
plantadas em outros quintais

falávamos de um sítio
na praia ou na montanha
no sul no norte nas gerais

falávamos de um encontro
e das atitudes práticas
na construção de catedrais

falávamos as bobagens
que os amantes se dizem
desde dias ancestrais

falávamos de outonos
quando as folhas se suicidam
nos seus amarelos finais

falávamos até o instante
que o ocaso se interpôs
entre os meus e os teus ais

nos falaremos depois
acerca dos que falávamos
e dos apenas sinais

quando fizermos silêncio
será tua a decisão
do sim do mas do jamais.


Fred Matos.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

gaiola de aflitos
maurício rosa


ficaram presos na mente
fincados como espinhos
na retina dos passantes...

vários já nem me lembro
dormiam ali guardados
pelos mourões de cimento
e pela manhã procuravam
feno como fosse mito
- encurralados detentos -
crianças os ajuntavam
e homens maus, dividiam...
vidas sem vida que instavam
forças na forma de gritos!

aquele foi o restante
de tantos vistos anteontem
ruminando as pradarias...
chifres tão bem inseridos
olhos colados no intento
gesto pausado... contrito!

---------- ô boi!!! ---------------

e o caminhão rompe a estrada
com a gaiola de aflitos!

noites

a saudade
inscrita no musgo da pedra marinha
onde um dia deixei meus olhos
vem em sonhos
e me desperta no meio da noite
insistindo por uma lágrima

nego-a

como de resto tenho negado
qualquer sinal de emoção
qualquer ato que possa me comover
além do suportável limite da razão

bebo água
fumo um cigarro
torno à cama.



Fred Matos
Cantiga
Para Eliane Malpighi

percebi, nalgum instante,
pedaços de poesia
sendo lançadas ao léu
quem os jogava possuía
um jeito quê! de menina
metido não sei bem como
num jeito ah! de mulher...
possuía essa poeta
um modo cazuziano
de dar beijos verdadeiros
no coração das pessoas...
de acariciar os amigos
entabular as paixões
cerzir carinhos no vento
florear desilusões!!!

existiu, a criatura,
capaz de fazer pinturas
com as agruras da vida
ou sonhou o pobre bardo
que vos fala e a dor do fardo
o faz assim delirar?

domingo, 18 de maio de 2008

"eu amava estes lugares onde as sílabas fulgem a floração do corpo"
Soledade Santos


êxodo
©mauricio rosa

vou açoitar meu silêncio
de tal forma que no rastro
fique a marca da chibata!
depois velarei meu medo
morto bem antes, mais cedo,
quando ainda havia enredo
nessa quietude de amar...
por fim, partirei sozinho
de encontro ao vão vazio
que concebi ao chegar!

Vê se te lembras

Era ainda cedo
vivíamos em tendas
só tínhamos
o que sabíamos transportar:
duas pedras de calcite
numa bacia de água com sal,
o cacto aéreo, desenraizado
como nós,
um jovem gato,
as lembranças guardadas
na bolsa de patchwork
que havíamos costurado.
E o coração nómada
nómada nómada.
Intimorato.

Soledade Santos

poema vermelho

ana terra


que a razão nos salve das
dívidas do que em nós foi
e é essência

não sei o que há quando o
tempo abre sua boca de

ciladas

nem o que perdi e o que
em mim permanece

meu amor

é como se um pássaro
perdido na noite solitária
buscasse teus passos


(um poema cheio de saudades dos guardados da memória. Do tipo saudades de Érico Veríssimo. Do tipo feitoagora, para botarparafora. abraços! lau)

nas horas e horas e meias

quando o dia amanhece

e o sol tinge a espuma

que se desmancha na areia

sinto queimando nas veias

uma coisa que coisa alguma

explica porque não fenece


quando o dia escurece

e a lua surge na bruma

onde Iemanjá se penteia

sinto romper as cadeias

fico leve como uma pluma

nada de mal me acontece


o sofrimento aparece

e o coração desapruma

quando enredado na teia

nas horas e horas e meias

entre a alvorada e a luma

peço que tudo se apresse.


Fred Matos
anonimato
© maurício rosa

deixo-me aqui tateando
os segredos que não vi
sou mero pó e o silêncio
é o nó que me desata...
antigamente vivia
em busca de horizontes
que raramente enxergava;
hoje, no escuro, toco
arrebóis que me ofuscavam...
rumores gris engoli
porque sem temores
(con)vivem
o poeta e o devir...

sábado, 17 de maio de 2008

A cozinha de minha avó

Julho era muito curto e só viajamos se algo de muito ruim acontecesse. Dezembro era o mês favorito, era irmão de janeiro e nos tempos de criança, ainda carregávamos fevereiro junto. Era permitido ‘comer’ uns dias de escola, por isso, nem dava bola se a professora reclamasse. Gostava da sala de aula, sentia saudades dos amigos e trazia um sotaque diferente. Tinha desculpas (das boas) pra tudo isso. Estava na Bahia:

É longe professora, viagem cara, de dias....

No ônibus já ia sentindo o cheiro.

Tem perfume de infância a cozinha de minha avó: carne de sol espetada sobre a brasa, outras penduradas por cima do fogão à lenha. Moscas rodeavam tudo. Um zumbido surdo, constante. Não punha reparo, só as mãozinhas ágeis davam conta da função: espantar as ditas pra fazer festa pro milho, amarelo bem claro, estourando, tostando minhas mãos gulosas. Os tomates cerejas da salada rala, rala como o verde da vida sertaneja, feijão de corda, farinha e arroz papa. À tarde: beiju, bolacha d’água e café torrado. A noite caía cedo e o tio mais moço, o mais lindo de todos, contava causos, acocorado no alpendre da casa de taipa.

Todos os dias eram uma festa sem fim: Acompanhar os passos largos de tio Pedro, seguindo determinado pra roça, feliz, com as chuvas de janeiro. Olhava os brotos de feijão e colhia umas bagas pro almoço. Conferia se a mandioca daria farinha farta pra pôr no silo que aguardava, pacientemente, na sala, até ficar de novo cheio até o teto. Silo que ouvia a festa de toda a vizinhança que corria pra Casa de farinha.

Era o tempo das rezas, dos maxixes, carurus e tinha procissão da Santa que se hospedava nas casas pra ouvir as ladainhas das mulheres, sentir o cheiro de vela, de bênção e de preces.

Ajudávamos como podíamos, eu, meus irmãos e primos. Os primos da roça riam de nós, os desajeitados primos da cidade. Não ligávamos, ríamos também e tio Pedro ria.

O verão trazia o riso pra roça, riso de menino brincando em açude, caindo de cavalo e levando surra de rabo de vaca. O verão trazia as estrelas, nas noites escuras, que ajudavam o tio a contar histórias de medo, de assombração, de meninas que tinham cabelos verdes, mortas por madrastas malvadas, de meninos pretos castigados até a morte, de vaqueiros corajosos que tinham salvado o mundo inteiro, de bichos falantes e inteligentes que protegiam seus donos, fosse bicho que voa, que anda, fosse bicho pequeno ou grande. Meu tio jurava que tudo era verdade:

Tio Pedro é cristão, não jura em falso pra amedrontar menino!

Boi Zebu era a comprovação de tudo. Ele tinha socorrido minha avó que se atrevera a espiar vaca que deu cria. Boi Zebu mugiu, urrou alto e chamou tio Pedro, enquanto minha avó, estirada no chão, cobria a cabeça com as mãos ensangüentadas. Tio Pedro ouviu boi Zebu de longe e entendeu e correu e boi Zebu já estava enfrentando a vaca, chifrando-a, protegendo minha avó, desmaiada no chão. Tio Pedro chegou e a vaca, ferida, afastava-se com seu bezerrinho, fula da vida com boi Zebu. Boi Zebu virou herói da família, a criançada toda o adorava: boi mansinho que havia salvo a vida da avó. O tio não o vendia por dinheiro nenhum do mundo. Boi Zebu era a prova das verdades de Tio Pedro.

Minha avó não perdeu a coragem. Era mulher forte e cheirava a fumo e a água de pote. Vivia com a brasa na colher pra acender o pito, encostada na porta, nos dava pito, ao nos ver afundando no açude. Ríamos e fingíamos ser peixe. Ela ralhava mais forte, saíamos e a roupa secava, enquanto vencíamos ou perdíamos o concurso de quem conseguia tirar o bago inteiro do licuri. Minha avó nunca nos beijava, mas seu abraço nos dizia com a força do aperto:

—Sejam bem- vindos, estávamos com saudades! Minha avó só lacrimejava seus olhos azuis, enrugados, com a fumaça do seu cigarro de palha e com a nossa partida: mulher nordestina não tem frescura, chora com a morte dos filhos e a partida é uma meia morte.

No inverno os cheiros mudavam todos. Não havia o leite fresco embebendo imbu, açúcar cristal completando a coalhada, nunca encontrada nas prateleiras dos mercadinhos da minha cidade:

Mãe, quero a coalhada com imbu da minha avó! Era a ladainha do retorno que a mãe aflita, não podia atender: onde o imbu da casa da minha avó?

Na cozinha de minha vó Antonina se encontra o nó de minhas lembranças, foi lá que eu deixei todos os cheiros preciosos do meu tempo de criança.

PS. As fotos são de tio Pedro hoje.

RELEVÂNCIAS REVELADORAS

Paulo Wainberg

Boca de siri e pó de mico eu entendo, mas chá de sumiço?, que produto é esse?

Boca de siri se explica porque é fato público e notório que siri não tem boca.

Então, quando alguém quer ficar calado finge que é um siri, caminha de lado, usa os dedos para beliscar o outrem e, como não tem boca, nada diz.

Boca de siri é um excelente remédio para depoentes de CPIs, políticos corruptos – com perdão da redundância – e mulheres que infiéis.

Recomendo.

O pó de mico, apesar de mais complexo, também é facilmente compreensível. Pó sabe-se o que é e mico também.

O pó é o conjunto de partículas infinitesimais que se estabelece em cortinas, prateleiras, estantes de livros, meias sujas, camarotes de navios, capôs de automóveis e regiões pubeanas com pouco uso. Origina-se da desfragmentação constante da matéria propriamente dita, ou seja, o que tem consistência e vai perdendo a consistência até se transformar nas partículas – pó – que é espanável mediante o uso de espanadores e esfregaço de mãos, espalhando-se por aí até sofrer os efeitos das leis da gravidade e da inércia, assentar-se nos mesmos locais de onde foram antes espanados. Nenhum mistério, pois.

O mico, por sua vez, é uma espécie macacal, normalmente de pequeno porte e com grande agilidade através do uso de suas quatro mãos e rabo, para pendurar-se em árvores, pulando de galho em galho. Extremamente inteligente, é capaz de utilizar suas capacidades reflexivas para copiar gestos e expressões humanas e vice-versa, simbolizando à perfeição a teoria darwiniana da evolução das espécies e a teoria freudiana de regressão das mesmas espécies.

Devido às reações osmóticas, tão comuns na natureza, o mico produz uma secreção sudorífera que se mistura ao pó que se instala em sua pelugem, fazendo com que a pele absorva o produto daí derivado, submetendo-se aos processos transformativos na região gástrica e expelido pela constante flatulência mical, produz desagradável alergia quando em contato com a pele humana, sintomatizada por infernal coceira.

Daí a origem da palavra “micose” que é quando você se coça desesperadamente e a coceira não passa nem com aplicação de nebacetim, cujo nome popular é sulfato de neomicina.

Originou também a inesquecível marcha de carnaval Venha cá seu guarda, bota pra fora esse moço que está no salão brincando com pó de mico no bolso. Foi ele, foi ele sim, foi ele que jogou o pó em mim (repete).

Acometido de micose ou por uma carga pesada de pó de mico você aprende o quanto dói um suplício, descobre para que servem, afinal, as unhas e depois de tentar as pomadas mais sofisticadas resolve acabar com tudo e toma um banho de álcool - que é quando você aprende o quanto dói uma ardência.

E não se cura.

Imagine esta situação: você foi convocado pelo Ministério Público para explicar de onde saíram os milhões acumulados em suas contas, descobertos graças ao cruzamento de seus dados pela Receita Federal, logo após encerrar o seu mandato de senador da república.

No percurso você decide virar um siri, andar de lado e ficar quieto como quando, depois da terceira tentativa e das várias explicações, não conseguiu tirar o sorriso de deboche do rosto dela.

Duas quadras antes de chegar um mico invade seu carro – você não aceita o conselho de sua mulher de nunca andar com o vidro aberto, bem feito! – abraça você, brincalhão como ele só, e... flatúa.

Bem, não sei se existe o verbo “flatuar” e como para bom entendedor meia palavra é bosta, permita-me ser um pouco vulgar em nome da compreensão: o mico peida, inundando você com o seu pó.

Imediatamente você sente os efeitos alérgicos e começa a se coçar e, se coçando, caminhando de lado e fingindo ter boca de siri, tem que enfrentar o promotor público, um menino que poderia ser seu filho ou, no caso, seu neto.

Ele pergunta e você se coça. E lá se vão três horas, você não agüenta mais a situação e, numa afronta indizível, abandona o recinto em busca de um garfo, um ancinho, um pente, qualquer coisa dura e pontuda que substitua as suas unhas manicuradas e curtas, inúteis para a coçagem.

Resultado: o promotor prende você por desacato, você é colocado numa cela repleta de presos com unhas compridas e coisas pontudas e aí...

É neste momento, neste exato momento, que você gostaria de tomar um chá de sumiço.

Chá é aquela infusão esnobe sem gosto ou de gosto ruim, muito útil quando acompanhada de aspirina, conhecida popularmente como ácido ascetil (?) salicênico (?), para aliviar os dissabores de uma gripe.

Sumiço, não vou explicar. Pelo menos isso você tem que saber o que é.

A lógica não falha, você quer ingerir uma infusão desagradável que faça você desaparecer.

Há muitos, mas muitos anos atrás eu tive que ir para casa e contar que rodei em física e tinha ficado em segunda época. Coisas do século passado que existiram, sim senhor.

Era uma tragédia ficar em segunda época, um exame que se realizava em fevereiro, estragando completamente as férias de verão. Uma vergonha para meus pais, quase uma desonra. Todos os filhos dos amigos deles, meus colegas de aula, tinham passado, menos eu. A segunda época era a chance que as escolas davam para quem não tinha estudado e uma catástrofe familiar. Eu ia ter que estudar o verão inteiro e fazer o exame para não perder o ano.

Eu caminhava rumo ao cadafalso sabendo que a notícia ia desestruturar a família e que sobre mim cairiam reprimendas inarráveis, proibições desastrosas como ir ao cinema, ouvir rádio (não tinha TV), ler gibi e a pior de todas, não ir para a praia.

Um desastre que só foi menor do que no ano seguinte, quando fiquei em segunda época em Desenho. Sim, minha amiga, Desenho era uma matéria do currículo escolar. A minha aptidão para Desenho equivalia à minha vocação para explorador submarino. Desenho estava tão distante da minha realidade quanto a criação de moluscos em cativeiro ou a receita de um risoto de camundongos no Cuzibistão.

Cada passo que eu dava aumentava meu medo, tudo o que eu queria era tomar um chá de sumiço. Entende? Desaparecer da face da terra, escapar do momento crucial em que, cabeça baixa e olhando para os bicos sujos do meu vulcabrás, dizer aos meus pais: fiquei em segunda época em física.

Na esquina tinha uma farmácia e apelei. “Moça, eu queria um chá de sumiço”.

Jamais, mas jamais mesmo, vou esquecer o olhar que ela me deu.

Do lado da farmácia tinha um armazém de secos e molhados, o precursor do supermercado. Também não vou esquecer o corridão que levei do velho que ouviu o meu pedido.

Foi quando compreendi que não existe chá de sumiço. Não adianta procurar em lugar algum, nem na Daslu.

Sinceramente, espero que você encontre alguma utilidade para esta crônica. Acabei de reler o que escrevi e, francamente...

Porém tenho esperanças. Se você achar que ela serve para alguma coisa não se omita e me diga, nem que seja para me fazer um carinho.

Ah, e um bom fim de semana....

sexta-feira, 16 de maio de 2008

poente
© Maurício Rosa de Almeida

calçando teus segredos vago a esmo
atrás dos mesmos passos que deixaste
beijando as mesmas faces que beijaste
refém da mesma essência, de mim mesmo!
juntando meus pedaços cato os restos
dos teus esparramados pelos cantos;
aqueles, carcomidos, desconexos,
os outros, empunhando desencantos...
e além do vão das dores paira o mundo
olhando com desdém o latifúndio
que somos – é um gesto nobre! (?)...
a vida passa e sobre os ombros pesa
a mesma angústia fria do passado:
o véu da eternidade nos recobre?

terça-feira, 13 de maio de 2008

poema - conc reto



conc reto


SIF ode
re in ventar
a roda

toda pá
lavra pode

beaucoup Mallarmé
merci

mereci
meu lance de qua
drados

me ver
de que te quiero
verte

é preciso ficar Lorco
Ezra preciso Pound erar
me permita ter Pessoa

fingir é preciso
viver não é preciso

mergulhei de cabeça
nos muros de João Cabral
ao traumatismo craniano
insisto sobreviver

injetei Leminski
de uma vez
um coágulo
meu peito tá condenado

então
deixa eu dar Bandeira
com a minha lira
dos meus poucos anos

e me perdoe
também vou te comparar
a um dia de verão

mais brado do que Bardo
não sei cantar

mas vou ter que ficar
uns tempos fora
com o Poema Sujo

mudarei meu nome para Raimundo
ser poeta clandestino
por ora é a solução

quanto aos poemas de Neruda
que me releio
e me raleio
no teu corpo

é meu limite

te amar
essa vanguarda antiga

roda roda
roda e avisa
um minuto de comercial


traga me
dois dedos de ar
caubói

e uma folha de papel


em branco
em branco
em branco



AL-Chaer


sábado, 10 de maio de 2008

poesia visual - Mãe



O poema visual acima é uma homenagem à "Mãe do turquinho caçulinha", a Dona Ana Antônia.


É também uma homenagem a Todas as Mães, que honram e dignificam a Vida, gerando Vida e dando Vida.


Amanhã, comemoramos no Brasil, o Dia das Mães.


Que Deus abençoe todas elas.



AL-Braços
AL-Chaer


quarta-feira, 7 de maio de 2008

domingo, 4 de maio de 2008

18 – A Dama do Metrô.

É verdade, tinha marcado a consulta e não fora. Refletiu. Para que ela queria saber o porque do que lhe acontecia? O que tinha a fazer era aproveitar, pois o tempo passa, a idade chega, aí só terá lembranças.
Malu na verdade, foi procurar o psicanalista. Chegou até a porta do consultório. Indecisa ficou por minutos sem saber se batia ou não. Vendo a decadência do corredor escuro, sujo, e na porta a tabuleta torta com os dizeres mal escritos: Dr. Valdo Pastore, psicanalista, atende também a domicilio, decidiu não entrar. Chamou o elevador e desceu.
Ao passar pela portaria notou o contraste chique com o restante do prédio. Achou esquisito ou, seria apenas aquele corredor que estava entregue as moscas. No momento em que transpôs a porta automática cruzou com o loiro.
- Será que ele...
Voltou rápida. Perguntou para o homem que estava atrás do balcão onde se lia: Informações.
- Por favor.
- Pois não, senhorita.
- Esse rapaz que acabou de entrar no elevador, é o Dr. Valdo Pastore?
- Quem? Luciano?
- Esse é o nome dele?
- Sim, mas não diga que eu falei. Ele é filho do Dr. Valdo.
- Ah! obrigado.
- Quer falar com ele?
- Não, pode deixar, obrigada.
Não precisava de médico. Conhecia-se e conhecendo-se é um passo para se chegar... Onde? Sei lá, em qualquer lugar. Esse era o lema que tomava para si. Achava que com essa atitude ou teoria, ou o que fosse, estava se auto-analisando. Se, estava ou não, também não faria diferença, estava contente consigo mesma.
Olhou para a direita e depois para a esquerda. Nada interessante. Fazer o que, suspirou seu coração afoito. Quem mandará levantar atrasada. Nisso a voz pausada do alto falante anunciou:
- Estação Consolação.
Saia do trem quando foi empurrada.
- Desculpe, disse numa voz desprovida de pressa.
Era novamente o loiro. Mas será possível, pensou preocupada.
- Aonde eu vou encontro esse cara! Que coisa! O que o destino está me preparando?
Perguntou mentalmente ao pisar no degrau da escada rolante.
27.10.06
pastorelli

sexta-feira, 2 de maio de 2008

A implosão da Mentira

AMIGOS:

em tempos de " apropriação" e malversação da obra alheia, circula na internet e no youtube uma versão pobre e estropiada do poema meu A IMPLOSÃO DA MENTIRA, publicado originalmente durante a última ditadura militar. Peço aos amigos que contra ataquem em seus blogs, sites e toda forma eletrônica de comunicação divulgando essa verdade textual.

Em tempo: cuidado com os que dizem que a verdade não existe e que é arte qualquer coisa que qualquer um chama de arte. É mais uma mentira a ser ex/implodida.

Grato pela divulgação, ars

A Implosão da Mentira

Affonso Romano de Sant’ Anna



Fragmento 1

Mentiram-me.Mentiram-me ontem

e hoje mentem novamente.Mentem

de corpo e alma, completamente.

E mentem de maneira tão pungente

que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.

Não mentem tristes.Alegremente

mentem. Mentem tão nacional/mente

que acham que mentindo história afora

vão enganar a morte eterna/mente.

Mentem.Mentem e calam. Mas suas frases

falam. E desfilam de tal modo nuas

que mesmo um cego pode ver

a verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil

e para alguns é cara e escura.

Mas não se chega à verdade

pela mentira, nem à democracia

pela ditadura.



Fragmento 2

Evidente/mente a crer

nos que me mentem

uma flor nasceu em Hiroshima

e em Auschwitz havia um circo

permanente.

Mentem. Mentem caricatural-

mente.

Mentem como a careca

mente ao pente,

mentem como a dentadura

mente ao dente,

mentem como a carroça

à besta em frente,

mentem como a doença

ao doente,

mentem clara/mente

como o espelho transparente.

Mentem deslavadamente,

como nenhuma lavadeira mente

ao ver a nódoa sobre o linho.Mentem

com a cara limpa e nas mãos

o sangue quente. Mentem

ardente/mente como um doente

em seus instantes de febre. Mentem

fabulosa/mente como o caçador que quer passar

gato por lebre. E nessa trilha de mentiras

a caça é que caça o caçador

com a armadilha.

E assim cada qual

mente industrial? mente,

mente partidária? mente,

mente incivil? mente,

mente tropical?mente,

mente incontinente?mente,

mente hereditária?mente,

mente, mente, mente.

E de tanto mentir tão brava/mente

constróem um país

de mentira

-diária/mente.


Fragmento 3

Mentem no passado. E no presente

passam a mentira a limpo. E no futuro

mentem novamente.

Mentem fazendo o sol girar

em torno à terra medieval/mente.

Por isto, desta vez, não é Galileu

quem mente.

mas o tribunal que o julga

herege/mente.

Mentem como se Colombo partin-

do do Ocidente para o Oriente

pudesse descobrir de mentira

um continente.

Mentem desde cabral, em calmaria,

viajando pelo avesso, iludindo a corrente

em curso, transformando a história do país

num acidente de percurso.



Fragmento 4

Tanta mentira assim industriada

me faz partir para o deserto

penitente/mente, ou me exilar

com Mozart musical/mente em harpas

e oboés, como um solista vegetal

que absorve a vida indiferente.

Penso nos animais que nunca mentem.

mesmo se têm um caçador à sua frente.

Penso nos pássaros

cuja verdade do canto nos toca

matinalmente.

Penso nas flores

cuja verdade das cores escorre no mel

silvestremente.

Penso no sol que morre diariamente

jorrando luz, embora

tenha a noite pela frente.


Fragmento 5

Página branca onde escrevo. Único espaço

de verdade que me resta. Onde transcrevo

o arroubo, a esperança, e onde tarde

ou cedo deposito meu espanto e medo.

Para tanta mentira só mesmo um poema

explosivo-conotativo

onde o advérbio e o adjetivo não mentem

ao substantivo

e a rima rebenta a frase

numa explosão da verdade.

E a mentira repulsiva

se não explode pra fora

pra dentro explode

implosiva.


(Poema publicado no JB em 1984, quando do episódio do Rio Centro e em diversas antologias do autor. Está em “ Poesia Reunida” L&PM, v.2)

poema - pizza média



pizza média


sobram cinco pedaços
dos oito
que saíram
derretendo

descansa na mesa
o coração fatiado

minha mãe me ensinou
a guardar na geladeira

pode ser que eu tenha fome
fora de hora
amanhã
ou daqui a três dias

se tenho pressa
levo ao microondas

o coração requentado

se tenho tempo
levo ao forno

pode ser que eu tenha fome
daqui a três anos

minha mãe não me falou
nada sobre isto

mãe não gosta
que filho coma
nada estragado

o coração embolorado

pode ser que eu telefone
e quem sabe
ainda tenha direito
a serviço de entrega

e quem sabe
eu peça

o coração
meio a meio


AL-Chaer

Diante de ti - Max Martins

Diante de ti
Max Martins*


Floresta de sangue - O aroma
ainda detém-se entre os arbustos lavados.

De um ramo a outro recompõe-se amarelo o segredo: ORAR
jogar pedras
palavras para o céu
para proteger-me.

E infundir silêncio nesta mão de madeira escrevendo o caminho.

Caminho por ti.
Caminho no tomo sombrio de uma bibliografia nervosa.

Tua frente é o que sabe melhor o não dito
(de onde segue este rio e a noite obediente)

Colocaram uma estrela trágica no vinho do beijo,
no fôlego com o beijo, na tua boca do cântico
dos cânticos
destes anos.
O tempo cavou o milagre do tempo e do ritmo. A língua
foi a origem do mundo. À Rainha-mãe da água e das ondas,
do poema do aroma.
E à dissolução do amor na debulha dos grãos.

Do zênite da boca ao papel suado da terra
crescem os mamilos da rosa. Arfam as pétalas sangüíneas.
Na messe do outono do galo o aroma desmaia.
Dói-me feliz o que ainda ignoro - diante de ti.

*Max Martins, poeta paraense, às vésperas de completar 82 anos

poesia visual - seios