quarta-feira, 8 de julho de 2009

O (verdadeiro) Brasil na poesia de Costa Fernandes

LUSOFONIA


Adelto Gonçalves (*)

I

Ficcionista, ensaísta e poeta, Ronaldo Costa Fernandes (1952) é, sobretudo, lírico, como prova o seu último livro, A máquina das mãos (Rio de Janeiro: Sete Letras, 2009), o quinto de uma obra poética que está em construção, mas que já se afirma como uma das mais autorizadas vozes líricas da poesia brasileira contemporânea. Esse lirismo está presente também em sua produção ficcional, como sabe quem leu O Viúvo (Brasília: LGE Editora, 2005), um romance que só não obteve maior repercussão porque saiu por uma editora fora do eixo Rio-São Paulo, vítima que é o seu autor, como tantos outros, do desprezo que a grande indústria editorial devota à literatura brasileira sob o discutível argumento de que não vende.

(Essa mesma visão mercantilista não só impede a grande indústria editorial de perceber que a literatura brasileira não vende porque não é publicada como mata no nascedouro muitas vocações. E ainda leva à valorização daquilo que, embora venda, não presta: basta um figurão do show business escrever qualquer patacoada para que o “produto” logo ganhe foro de genialidade e páginas nas revistas e no espaço cultural dos jornais).

Se um poeta é aquele que sabe tocar o exato limite entre a falta e o excesso, a forma e o fundo, a linguagem e o conteúdo, o estilo e a temática, como bem observou o também poeta e crítico Hildeberto Barbosa Filho no posfácio que escreveu para A máquina das mãos, este poeta é Ronaldo Costa Fernandes que, acima de tudo, nunca perde a ternura que, afinal, é o material de combustão de que se faz a verdadeira poesia.

Quem quiser comprovar o que se escreve aqui que leia com atenção os versos que o poeta dedicou a dois amigos mortos. Um deles é aquele que em que rememora as últimas horas de Samuel Rawet (1929-1984), “sua angústia judia e imigrante”:

(...) Rawet morreu lendo, em sua cadeira de balanço

e lá ficou três putrefatos dias.

O gueto de Rawet era sua cadeira de balanço,

o menor gueto do mundo.

Ou, então, o longo poema que dedicou à memória do poeta Fernando Mendes Vianna (1933-2006), que faz lembrar Pablo Neruda (1904-1973) evocando a memória de um amigo em “Alberto Rojas Jiménez viene volando”, poema de Residencia en la tierra (Buenos Aires, Editorial Losada, 1976):

Por que não falas na tua última conferência?

Por que não gesticulas?

Tu, que te movias alvoroçado

como as pás de um motor

-- desligado, apenas a promessa de nau;

acionado, o furor dos pensamentos

em redemoinho.

Tu, gigante leve,

andavas mais perto das nuvens,

ao acreditar que a poesia era mitologia.

Que mito parou tua máquina de poetar? (...)

II

Como se vê, há em Costa Fernandes, como em todo bom poeta, a tentativa de reter o tempo e aquilo que se vive (ou viveu). Como se a vida fosse um filme cujas imagens pudessem ser retidas (congeladas) na memória e as pessoas pudessem ser revividas sempre que alguém acionasse uma máquina fantástica, tal como o poeta faz ao evocar no poema “La invención de Morel” a obra-prima do argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999):

Para onde irão as coisas acontecidas?

Por certo não devem estar só na memória

-- que é gelatinosa e tende à movediça régua,

que, em vez de precisão,

encurta o que é longo –

por certo devem estar paralisadas

-- é curvo o metro da razão –

em algum espaço que não acumula o que recolhe

nem apaga quando se desfaz,

nem se destrói ao morrer,

deve haver um cemitério de fatos,

lá, onde todas as coisas – esquecidas ou não –

perduram e se repetem.

Maranhense criado no Rio de Janeiro e radicado em Brasília, Costa Fernandes não só faz lembrar Neruda, mas também Fernando Pessoa (1888-1935) de “Tabacaria”, como se vê nos versos de “Delito do corpo”:

Por que certos amores

insistem em não envelhecer?

Por que alguns amores permanecem

como a mancha que nenhuma lavanderia apaga?

Não se vergam ao tempo

feitos de flandres humano,

não oxidante,

flébeis e olorosos

igual à matéria de jardinagem

que adubasse flores de carne? (...)

(...) Quem sabe algum dia

a loucura arranque

o que não ousa nascer,

o que sobrevive morto,

e o amor outra vez

se aliste na tropa do meu corpo?

O único crime que cometi foi a vida.

Essa marca de verdadeiro poeta Costa Fernandes já havia deixado em livros de poesia anteriores, como o livro-folheto de estréia Urbe (1975), que costuma renegar, Estrangeiro (1997), Terratreme (1998), Andarilho (2000) e Eterno passageiro (2004). Como observou Antonio Carlos Secchin no prefácio que escreveu para Eterno passageiro (Brasília, Varanda, 2004), há um lapso de 22 anos entre a estréia e a retomada poética do autor: nesse longo intervalo, ele construiu sólida carreira como romancista, tendo sido contemplado, inclusive, com o prestigioso prêmio Casa de Las Américas, por seu romance O morto solidário, traduzido e publicado em Cuba. Publicou ainda o romance Concerto para flauta e martelo (Rio de Janeiro, Editora Revan, 1997).

Ganhou vários prêmios, como o Guimarães Rosa e o da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Morou nove anos na Venezuela, onde dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros em Caracas. Publicou ainda o livro de contos Manual de tortura (Brasília: Esquina das Palavras, 2007) e o de ensaios A ideologia do personagem brasileiro (Editora da UnB, 2007). Na área de ensaio, publicou também O narrador do romance (Rio de Janeiro: Editora Sete Letras, 1996), prêmio Austregésilo de Athayde da União Brasileira de Escritores (UBE), seção Rio de Janeiro.

III

Como mostra o currículo, Costa Fernandes é ainda fino ensaísta, como se pode ver no texto “Considerações sobre um poeta: Lêdo Ivo”, publicado na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, ano XIV, nº 56, jul.-set.2008, em que estuda com profundidade o processo poético e bibliográfico de um dos maiores poetas brasileiros do nosso tempo. Sempre acusado de prolixidade, Lêdo Ivo (1924), no dizer de Costa Fernandes, é um poeta caudaloso, sim, porque tem o que dizer, ou seja, nele o excesso é virtude, exatamente o contrário dos concretistas que sempre foram econômicos porque não teriam muito a expressar.

As escarafunchar e buscar as linhas-mestras da poesia de Lêdo Ivo, como a recorrência da imagem escuridão-noite-lua, Costa Fernandes mostra que está longe de ser um poeta intuitivo, sendo antes um poeta cerebral, que sempre soube se munir de extenso arcabouço teórico e do itinerário poético de outros grandes poetas para mais bem desenvolver o seu ofício de artesão do verso, não fosse doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília (UnB).

Ao tempo em que dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros em Caracas, diz que constatou pessoalmente o interesse do leitor hispano-americano pela poesia de Lêdo Ivo, o que o levou a promover a publicação de uma coletânea dos seus poemas traduzidos ao castelhano. E o coloca no mesmo nível de Neruda, Nicolás Guillén (1902-1989), Lezama Lima (1910-1976), Octavio Paz (1914-1998), Mario Benedetti (1920-2009) e outros que fizeram uma poesia de tradição universal, mas igualmente de cunho latino-americano. Para ele, talvez seja a conjugação de “cerebralismo” e de uma dicção robusta que leve hispano-americanos a se encantarem com a poesia de Lêdo Ivo.

Costa Fernandes segue no mesmo caminho de Lêdo Ivo: faz uma poesia antenada com a tradição universal, mas profundamente brasileira, não porque busque imagens ou temas exóticos

ao olhos do leitor de fora (como aqueles quadros de borboletas que ainda se vendem em aeroportos e vendiam-se em lojas próximas ao porto ao tempo em que os turistas aqui chegavam de navio), mas porque a sua arte poética está contaminada pelo espírito terno e cordial do brasileiro comum que nada tem a ver com a violência de uma sociedade hoje refém de narcotraficantes e políticos corruptos.

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A MÁQUINA DAS MÃOS, de Ronaldo Costa Fernandes. Rio de Janeiro: Editora Sete Letras, 102 págs., 2009. E-mail: editora@7letras.com.br

Site: www.7letras.com.br

CONSIDERAÇÕES SOBRE UM POETA: LÊDO IVO, de Ronaldo Costa Fernandes. Separata da Revista Brasileira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, , nº 56, ano XIV, fase VII, jul.-set. 2008


(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br


Segue artigo publicado no jornal quinzenal As Artes entre as Letras, do Porto, nº 3, 1/7/2009, p.15.

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