A palavra “anti-semitismo” tornou-se logo de uso corrente, encontrando um campo amplo para seu emprego, e, amparando-se no culto da ciência, que a tornou muito popular a partir dos últimos vinte anos do século XIX, todos os postulados “científicos” do termo foram avidamente aceitos por determinados segmentos da ideologia nacionalista patriótica.
Marr embasava o termo “anti-semitismo” com uma identidade racial, asseverando que o caráter “inato” dos judeus ou semitas – considerados descendentes de Shem, um dos três filhos de Noah mencionados no livro bíblico da Gênese – era absolutamente oposto ao caráter “nobre e puro” dos arianos (Marr, ao dizer “aria-nos”, tinha em mente os teutões e nórdicos, tais como alemães, austríacos, escandinavos, holandeses, ingleses, franceses etc.). Ele considerava, magnanimamente, que os judeus não podiam deixar de ser o que eram; isto é, homens “inferiores moral e fisicamente”, porque a natureza assim havia predeterminado.
Essa mistura de contra-sensos pseudocientíficos era ministrada pelos raivosos racistas aos ignorantes e apáticos e só fazia divertir ou irritar os eminentes homens de ciência daquela época.
De certa forma, o arianismo começou assim: no ano de 1808, Friedrich von Schlegel, o célebre estudioso do sânscrito (católico casado com a filha de Moisés Mendelssohn, Dorothea), observou, no decurso de suas pesquisas filológicas, certa proximidade entre o persa e o sânscrito, de um lado, e as línguas teutônicas (alemão, sueco, holandês etc.), de outro. A partir dessas observações inteiramente acidentais e de outras realizadas por vários filólogos, elaborou de uma língua ancestral comum, o “ariano”, supostamente falada por um povo chamado “ariano”, que habitava a terra de “Ariana”, uma hipótese para a origem dessas línguas “aparentadas”.
Nem é preciso dizer que o “ariano” era uma língua perdida e esquecida; os próprios “arianos” haviam desaparecido no bojo da história e a terra de “Ariana” era mencionada superficialmente no Zend Avesta, livro das escrituras semíticas do zoroastrianismo persa, escrito por volta do ano de 1000 a.E.C.Nãohá, entretanto, qualquer indicação de onde estaria situada.
Foi nesses hipotéticos arianos, habitantes de um país hipotético chamado Ariana, que falavam uma língua hipotética, o ariano, que os anti-semitas do século XIX, entre os quais estavam professores, jornalistas e demagogos alemães, foram buscar as fontes de sua nobreza ancestral e de seu orgulho de fazer parte de uma “raça superior” da Humanidade. Não resta dúvida que o sentimento nacional, que se seguiu ao triunfo espetacular dos alemães sobre os franceses, na guerra franco-prussiana de 1870, estimulou enormemente o desenvolvimento do princípio “científico” anti-semita do arianismo; fê-lo parecer convincente. Ao mesmo tempo, buscando inspiração na mesma fonte literária – o Zend Avesta – os anti-semitas do século XIX fizeram uma analogia entre o princípio zoroastriano da dualidade e da oposição mortal que se sabe existir entre a deidade da luz (Ormuz) e a idade da treva (Arimã) e a oposição, igualmente mortal, que se supunha existir entre a raça ariana (a “raça superior” alemã) e a raça semítica (a “raça escrava” judia). A conclusão a que chegaram era a seguinte: assim como o deus persa da luz estava empenhado em eterna batalha com o deus das trevas, até que este último fosse derrotado – assim devia a raça ariana encetar um combate mortal contra o judaísmo até destruí-lo.
Quanto à “pureza racial”, reivindicada pelos apologistas “arianos” em favor do povo alemão, o eminente antropólogo francês Pittard fez a seguinte observação, no início do século: “Há tanta diferença entre um pomeraniano da costa do Báltico e um bávaro do maciço do Amer, quanto a que existe entreum cavalo e uma zebra.” (Polskraiser: apud Clemesha1998, 68).
Nos anos intermediários entre a guerra franco-prussiana e a unificação de todos os estados alemães, em 1871, e a tomada do poder por Adolf Hitler, em 1932, havia na Alemanha um número relativamente grande de judeus, que prosperavam, a esse tempo. Sob a orientação oportunística do Príncipe Bismarck, que compreendia a reação e o liberalismo a um só tempo, os judeus conseguiram a emancipação civil e total e, portanto, oportunidades iguais sob o ponto de vista jurídico em qualquer ramo de atividade. Está fora de dúvida que, durante as três décadas finais do século XIX, a grande expansão comercial e industrial da Alemanha deu a muitos judeus uma oportunidade sem par. Muitos enriqueceram e se integraram aos pilares da sociedade, exercendo atividades tais como as de fabricante, negociante, banqueiro, médico, engenheiro, advogado, além de práticas culturais, como a música e a literatura.
Não será necessário insistir em que o elemento de ressentimento permeou o pensamento de muitos anti-semitas com relação a seus compatriotas alemães de origem judaica. Desde quando os Cavaleiros da Cruz, ao final do século XI, se haviam expressado aos gritos de “Hab hab!” (“Dê, dê!”), os inimigos dos judeus em todos os países da Europa, nos séculos que se seguiram, passaram a encobrir sua cupidez pelo dinheiro e pelas posses dos judeus com a unção de um sentimento piedoso. Essa combinação de sentimentos foi, sem dúvida, a centelha que provocou a petição popular assinada por 300.000 cidadãos prussianos, em 1880 – a que se seguiram dois dias de violentos debates no Parlamento – requerendo do Marechal de Ferro (Bismarck) que excluísse os judeus de todas as escolas e universidades e que lhes proibisse ocupar qualquer cargo público. “A mistura do elemento semítico ao elemento germânico de nossa população demonstrou ser um fracasso. Temos que enfrentar agora a perda de nossa superioridade pela ascendência do judaísmo, cuja influência sempre crescente provém de características raciais que a nação alemã não pode e não deve tolerar, a não ser que deseje destruir a si mesma”.
Quão diferente era o tratamento que dera Robespierre, durante a Revolução Francesa, aos propalados defeitos “judaicos” (como se outros povos também não tivessem as mesmas deficiências!). Falando aos delegados da Assembléia Nacional para solicitar que incluíssem os judeus nas provisões humanísticas dos Direitos do Homem, disse ele: “Os defeitos dos judeus provêm do rebaixamento a que vós (cristãos) os haveis submetido. Se elevarmos sua condição, rapidamente farão jus a ela.” (NYISZLI: 1980, 189)
Segundo um dito antigo, “os judeus eram amaldiçoados por fazer e eram amaldiçoados por não fazer”. O reverendo Dr. Stöcker, pregador de Potsdam, favorito do Kaiser, declarou: “Os judeus são, simultaneamente, os pioneiros do capitalismo e do socialismo revolucionário, trabalhando assim pelos dois lados para destruir a atual ordem social e política.” (SARTRE: 1954, 76).
Os anti-semitas alemães, evidenciando sempre forte inclinação nacional para a metafísica, para a obtenção de conclusões “científicas” e para a elaboração de formulações precisas a partir delas, desenvolveram seu ódio aos judeus obedecendo a um sistema científico irrefutável – assim pensavam eles. Observa-se, freqüentemente, que sociedades ou grupos de homens, quando querem fazer parecer aos outros que suas ações são mais corretas e justificadas do que na realidade, tratam de adorná-las com racionalizações altissonantes de natureza intelectual, moral e legal, para assim disfarçar-lhes a má índole. Como observou, porém, o célebre jornalista e filósofo satírico judeu, Max Nordau, (1849-1923), ao comentar acerbamente as proezas “intelectuais” dos anti-semitas: “Os pretextos variam, mas o ódio continua.” (CLEMESHA 1998, 145)
O ódio dos anti-semitas na Alemanha e na Áustria perdurou, mas, a partir dos meados do século XIX, surgiu um pretexto novo, desta vez fornecido por intelectuais e professores – etnólogos, biólogos, psicólogos e historiadores – visando a supressão total (ver a plataforma do Reformista Lutero) e mesmo o extermínio físico dos judeus. Essa inovação foi liderada por dois homens: Conde Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882) e Houston Stewart Chamberlain (1885-1927).
Gobineau, diplomata e orientalista francês, que publicou um Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas, em quatro volumes (Paris, 1853-1855), tomou como base de sua tese a visão dos judeus (semitas) como “uma raça mista” e que “tudo de grandioso, nobre e frutificador nas obras do homem [...] pertence a uma família (a ariana), cujos diferentes ramos reinam em todos os países civilizados do globo” (GOBINEAU apud CLEMESHA 1998, 93).
O outro mentor intelectual dos anti-semitas alemães, Chamberlain, era genro do compositor Richard Wagner que, por sua vez, havia atacado impiedosamente os judeus no seu ensaio nada musical “O Judaísmo na Música”. Chamberlain foi autor da obra mais agressiva, talvez, já publicada a respeito de judeus, fazendo-a editar sob o título acadêmico e totalmente enganador de Os Fundamentos do Século XIX (1899). A obra mereceu a aprovação entusiástica do Kaiser Guilherme II e dela foram vendidos quase um milhão de exemplares somente em língua alemã. Uma amostra típica do que o livro contém é a seguinte reflexão: “... a raça judaica está completamente abastardada, e sua existência é um crime contra as sagradas leis da vida...” (CHARBERLAIN apud CORREA NETO: 1980, 79)
Por falar em “sagradas leis da vida”, outro inimigo do povo judeu, igualmente influente e devoto, o reverendo Dr. Adolf Stöcker, pregador da corte de Guilherme I e líder do bloco anti-semita do Reichstag, também entrou na arena como defensor da “santidade”. Mas a santidade pela qual lutava era a chamada pureza do sangue alemão. Dizia ele: “... o judaísmo moderno é uma gota de sangue estrangeiro no corpo alemão – e tem poder destrutivo” (NYISZLI: 1980, 49) Foi Stöcker, fundador do Partido Socialista Cristão, em 1878, quem cunhou, naquela ocasião, a legenda que se tornou o grito de guerra dos nazistas contra os judeus, meio século depois: “Deutschland – erwache!” (Alemanha, acorda!). Os socialistas cristãos também adotaram em seu programa político uma plataforma central que exigia uma Alemanha que fosse Judenrein (purificada de judeus).
Curiosamente, nessa preocupação com a pureza racial do povo alemão, Chamberlain e Stöcker, como também os outros líderes intelectuais do movimento anti-semita alemão, cada vez mais florescente – Wilhelm Marr, Hermann Ahlwardt, Heinrich van Treitschke, Conde Wajter Puckler-Muskau e o filósofo Eugen Dühring – tinham idéias “cientificas” análogas à limpeza, à pureza do sangue (que era a obsessão dos racistas espanhóis durante o século XIV).
O problema judaico não era mais da alçada da religião cristã. Os anti-semitas intelectuais, tal como os arruaceiros das cervejarias, opunham-se violentamente à conversão dos judeus ao cristianismo, devido à “mácula” que o “sangue judaico” traria à corrente puríssima de sangue germânico, através dos casamentos mistos.
Do alto de sua elevada eminência, o filósofo Dühring dava ao povo alemão o seguinte conselho genocida, quanto ao trato com os judeus: “não deveriam ficar inibidos por qualquer escrúpulo, e sim usar os mais modernos métodos de desinfecção” (DÜRHRING apud SARTRE 1954, 104). Dessa “filosofia de desinfecção” às câmaras de gás nazistas, onde foram asfixiados seis milhões de judeus em 1940-45, a distância era de poucos passos e de apenas sessenta anos.
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