Durante muito tempo pensei que Talião fosse o nome de algum cruel tirano da antiguidade, brutal e vingativo, que a ninguém perdoava e, olho por olho, dente por dente, punia os desagravos com ferocidade implacável.
Muitas coisas na vida são assim, ouve-se falar, tira-se as próprias conclusões e acredita-se nelas como se fossem verdadeiras.
Não recordo como a expressão “olho por olho, dente por dente” entrou na minha esfera de conhecimento, se através de amigos, de alguma leitura, notícia de jornal ou citação e sempre teve, para mim, a conotação de incitar vingança, de ser uma norma cruel e de péssima reputação.
Ocorreu que certa madrugada despertei pensando: “Quem foi Talião?”. A pergunta ficou martelando até que adormeci novamente. Quando acordei pela manhã, a perguntou ressurgiu e, antes de querer a resposta, eu perguntava o motivo da pergunta.
Na época eu fazia terapia em grupo, uma grande experiência por sinal. Coloquei a questão para grupo, na esperança de ouvir uma explicação dos colegas e uma interpretação do terapeuta.
Vã esperança. O assunto não deu IBOPE, o máximo que ouvi, “em passant” como diz o Lula, foi um comentário distraído: - ter curiosidade não é problema – e foi-se o grupo a tratar do problema de um rapaz que vomitava sempre que se aproximava de uma mulher.
Não me amofinei, sinceramente. Se eu queria saber quem foi Talião, então que fosse pesquisar e saberia. Na época as fontes rápidas de informação eram as enciclopédias, enormes coleções que tratavam, sinteticamente, do manancial do conhecimento e tinham que ser atualizadas todos os anos. Não era fácil a procura. O último volume em geral era um índice alfabético que remetia ao número do volume e da página correspondente. Se você não encontrasse o que procurava no índice podia desistir, a informação não existia ou não estava disponível.
Havia três enciclopédias na biblioteca do meu pai: a Jackson, a Barsa e o Tesouro da Juventude.
Durante algumas semanas olhei para as estantes e deixei para amanhã a pesquisa, eu tinha coisas mais importantes a fazer, a principal delas era esperar que meus pais saíssem para o cinema para tentar comer a empregada doméstica.
Durante o dia não dava para pesquisar, tinha o colégio, o futebol, o tema de casa – que sempre ficava para depois, os amigos, as gurias, atividades prioritárias que teimavam em reforçar minha preguiça, meu pecado capital preferido, depois da luxúria e da gula.
Passaram os dias e passou o desejo de saber quem foi Talião. O assunto afastou-se da minha realidade tanto quanto a desova dos bacuris ou as leis de consumo na Groelândia.
Seguiu a vida como os rios, Talião e sua Lei repousando em algum limbo da memória, arquivo não utilizado.
Alguém já usou a expressão: “os insondáveis mistérios da mente”? Caso ninguém tenha usado alegre-se, você está diante de uma originalidade. Mas não se empolgue, tenho certeza que já ouvi essa expressão, literariamente falando.
Pois.
A mente possui insondáveis mistérios, o maior deles é o comportamento. Explico melhor: a mente se comporta tão misteriosamente que, nem usando as mais modernas técnicas de hipnose, de lavagem cerebral, lobotomia central ou lateral, introdução de chips aleatórios, condicionantes ou perspicazes, biópsias eletrônicas, autópsias médico-legais, perfurações profiláticas, anodos sinodiais e ondas nanomagnéticas, se consegue sondar.
Não é que, há quinze dias, acordo de madrugada querendo saber quem foi Talião? Olhei o relógio, eram quatro e meia. Levantei e fui ao banheiro, fazer xixi. Terei acordado para fazer xixi e pensado em Talião ou terei acordado pensando em Talião e aproveitado para fazer xixi?, era o que me perguntava, observando as borbulhas na água do vaso sanitário. Puxei a água, lavei as mãos e, decidido a não prolongar a matéria e adiar a dúvida, combati herculeamente a preguiça e fui pesquisar.
Diante de mim, no lugar das imensas estantes e suas enciclopédias intermediáveis, a tela e o teclado do computador.
Ó benesses da vida moderna e suas simplificações.
Contive a impaciência enquanto minhas configurações eram abertas, os ícones da área de trabalho se revelavam, os negocinhos da barra de ferramentas entravam em ordem e o anti-virus realizava uma atualização automática. Cliquei na internet, entrei no Google, digitei Lei de Talião entre aspas e em 0,12 segundos apareceram aproximadamente 47.100 informações.
Não pesquisei todas, na verdade apenas duas.
Descobri, espantado, que “talião” não é ninguém, não é um lugar, não é sequer o nome de alguma coisa. É uma palavra composta originária do latim: talis onis ou talio onis, isto é, “pena igual à ofensa”, norma descoberta pela primeira vez no Código de Hamurabi e depois referida na Tora judaica, manifestada pelo aforismo universal, Olho por Olho, Dente por Dente.
Estarrecido, continuei lendo e aprendi uma coisa que, como advogado, eu devia saber há muito: a lei de talião constitui a primeira manifestação legal que estabelece que a indenização deve corresponder exatamente ao dano causado, nem mais nem menos. Dela provem as proibições existentes nos Códigos Civis, desde o Direito Romano, de enriquecimento ilícito, isso é, alguém obter vantagem indevida a custa de outrem, ainda que o outrem tenha causado um dano.
Ao contrário de ser a expressão imperativa para “vingança”, a Lei de Talião limita o direito do prejudicado em ver reparado o dano sofrido e impede que o causador desse dano seja explorado, tendo que indenizar além do prejuízo que causou. Se me tirares um olho, terás que me devolver um olho. Se me tirares um dente, terás que me devolver um dente.
A conotação vingativa foi introduzida pela Igreja Católica que tanto revisou o Velho Testamento. Segundo a nova interpretação, se me tirares um olho, tenho o direito de te tirar um olho, se me tirares um dente, tenho o direito de te tirar um dente.
Ou seja, vingança pelo prazer da vingança, visto que nenhuma vantagem aufere alguém que se cobra de um olho perdido tirando um olho do outro.
A norma original, que continha um conceito primordial da Justiça – reparação do dano no limite do dano - foi transformada em apologia do ódio gratuito, enriquecendo o manancial das pregações religiosas e suas eternas e inúteis sagas em favor do Bem, na eterna luta contra o Mal.
Que coisa!
Não sei você mas eu prefiro o sentido original: se você me prejudicar em dez, tem que me indenizar em dez e não vinte.
Bem melhor do que aleijar a sua perna, caso você tenha aleijado a minha num acidente causado por você.
Para que serviriam, aos olhos do mundo, das religiões e dos deuses, mais dois mancos atravancando o fluxo de pedestres, nas calçadas?
Paulo Wainberg
Muitas coisas na vida são assim, ouve-se falar, tira-se as próprias conclusões e acredita-se nelas como se fossem verdadeiras.
Não recordo como a expressão “olho por olho, dente por dente” entrou na minha esfera de conhecimento, se através de amigos, de alguma leitura, notícia de jornal ou citação e sempre teve, para mim, a conotação de incitar vingança, de ser uma norma cruel e de péssima reputação.
Ocorreu que certa madrugada despertei pensando: “Quem foi Talião?”. A pergunta ficou martelando até que adormeci novamente. Quando acordei pela manhã, a perguntou ressurgiu e, antes de querer a resposta, eu perguntava o motivo da pergunta.
Na época eu fazia terapia em grupo, uma grande experiência por sinal. Coloquei a questão para grupo, na esperança de ouvir uma explicação dos colegas e uma interpretação do terapeuta.
Vã esperança. O assunto não deu IBOPE, o máximo que ouvi, “em passant” como diz o Lula, foi um comentário distraído: - ter curiosidade não é problema – e foi-se o grupo a tratar do problema de um rapaz que vomitava sempre que se aproximava de uma mulher.
Não me amofinei, sinceramente. Se eu queria saber quem foi Talião, então que fosse pesquisar e saberia. Na época as fontes rápidas de informação eram as enciclopédias, enormes coleções que tratavam, sinteticamente, do manancial do conhecimento e tinham que ser atualizadas todos os anos. Não era fácil a procura. O último volume em geral era um índice alfabético que remetia ao número do volume e da página correspondente. Se você não encontrasse o que procurava no índice podia desistir, a informação não existia ou não estava disponível.
Havia três enciclopédias na biblioteca do meu pai: a Jackson, a Barsa e o Tesouro da Juventude.
Durante algumas semanas olhei para as estantes e deixei para amanhã a pesquisa, eu tinha coisas mais importantes a fazer, a principal delas era esperar que meus pais saíssem para o cinema para tentar comer a empregada doméstica.
Durante o dia não dava para pesquisar, tinha o colégio, o futebol, o tema de casa – que sempre ficava para depois, os amigos, as gurias, atividades prioritárias que teimavam em reforçar minha preguiça, meu pecado capital preferido, depois da luxúria e da gula.
Passaram os dias e passou o desejo de saber quem foi Talião. O assunto afastou-se da minha realidade tanto quanto a desova dos bacuris ou as leis de consumo na Groelândia.
Seguiu a vida como os rios, Talião e sua Lei repousando em algum limbo da memória, arquivo não utilizado.
Alguém já usou a expressão: “os insondáveis mistérios da mente”? Caso ninguém tenha usado alegre-se, você está diante de uma originalidade. Mas não se empolgue, tenho certeza que já ouvi essa expressão, literariamente falando.
Pois.
A mente possui insondáveis mistérios, o maior deles é o comportamento. Explico melhor: a mente se comporta tão misteriosamente que, nem usando as mais modernas técnicas de hipnose, de lavagem cerebral, lobotomia central ou lateral, introdução de chips aleatórios, condicionantes ou perspicazes, biópsias eletrônicas, autópsias médico-legais, perfurações profiláticas, anodos sinodiais e ondas nanomagnéticas, se consegue sondar.
Não é que, há quinze dias, acordo de madrugada querendo saber quem foi Talião? Olhei o relógio, eram quatro e meia. Levantei e fui ao banheiro, fazer xixi. Terei acordado para fazer xixi e pensado em Talião ou terei acordado pensando em Talião e aproveitado para fazer xixi?, era o que me perguntava, observando as borbulhas na água do vaso sanitário. Puxei a água, lavei as mãos e, decidido a não prolongar a matéria e adiar a dúvida, combati herculeamente a preguiça e fui pesquisar.
Diante de mim, no lugar das imensas estantes e suas enciclopédias intermediáveis, a tela e o teclado do computador.
Ó benesses da vida moderna e suas simplificações.
Contive a impaciência enquanto minhas configurações eram abertas, os ícones da área de trabalho se revelavam, os negocinhos da barra de ferramentas entravam em ordem e o anti-virus realizava uma atualização automática. Cliquei na internet, entrei no Google, digitei Lei de Talião entre aspas e em 0,12 segundos apareceram aproximadamente 47.100 informações.
Não pesquisei todas, na verdade apenas duas.
Descobri, espantado, que “talião” não é ninguém, não é um lugar, não é sequer o nome de alguma coisa. É uma palavra composta originária do latim: talis onis ou talio onis, isto é, “pena igual à ofensa”, norma descoberta pela primeira vez no Código de Hamurabi e depois referida na Tora judaica, manifestada pelo aforismo universal, Olho por Olho, Dente por Dente.
Estarrecido, continuei lendo e aprendi uma coisa que, como advogado, eu devia saber há muito: a lei de talião constitui a primeira manifestação legal que estabelece que a indenização deve corresponder exatamente ao dano causado, nem mais nem menos. Dela provem as proibições existentes nos Códigos Civis, desde o Direito Romano, de enriquecimento ilícito, isso é, alguém obter vantagem indevida a custa de outrem, ainda que o outrem tenha causado um dano.
Ao contrário de ser a expressão imperativa para “vingança”, a Lei de Talião limita o direito do prejudicado em ver reparado o dano sofrido e impede que o causador desse dano seja explorado, tendo que indenizar além do prejuízo que causou. Se me tirares um olho, terás que me devolver um olho. Se me tirares um dente, terás que me devolver um dente.
A conotação vingativa foi introduzida pela Igreja Católica que tanto revisou o Velho Testamento. Segundo a nova interpretação, se me tirares um olho, tenho o direito de te tirar um olho, se me tirares um dente, tenho o direito de te tirar um dente.
Ou seja, vingança pelo prazer da vingança, visto que nenhuma vantagem aufere alguém que se cobra de um olho perdido tirando um olho do outro.
A norma original, que continha um conceito primordial da Justiça – reparação do dano no limite do dano - foi transformada em apologia do ódio gratuito, enriquecendo o manancial das pregações religiosas e suas eternas e inúteis sagas em favor do Bem, na eterna luta contra o Mal.
Que coisa!
Não sei você mas eu prefiro o sentido original: se você me prejudicar em dez, tem que me indenizar em dez e não vinte.
Bem melhor do que aleijar a sua perna, caso você tenha aleijado a minha num acidente causado por você.
Para que serviriam, aos olhos do mundo, das religiões e dos deuses, mais dois mancos atravancando o fluxo de pedestres, nas calçadas?
Paulo Wainberg
2 comentários:
Muito Bom!!!
Parabéns! Quanta informação!
Postar um comentário