quarta-feira, 29 de outubro de 2008

39 – A Dama do Metrô


O sol batia na janela quando Malu acordou. Luciano deitado de borco, abraçado à perna de Malu, com a cabeça debaixo da coxa esquerda, parecia não querer acordar. Malu retirou a perna de cima da cabeça loira, e com o pé, sacudiu Luciano, que ao se virar para o lado esquerdo, caiu da cama. Sentada, divisou o olhar pelo quarto. Os dois rapazes dormiam um em cada poltrona, a mulher... bem, o travesti sentado no chão com a costa apoiada à parede, olhava para ela com cara de tédio. Sorriu ao vê-la acordada. Malu desviou os olhos. Escorregou para a beirada da cama. Luciano ainda dormia no chão frio do assoalho.
- Acorda, Luciano, vamos acorda.
Sonolento, bocejando álcool fétido, o bafo foi de encontro ao rosto dela, obrigando-a a fazer uma careta de nojo.
- O que foi?
- Não vai levantar, não?
- Vou... espera, quero tomar um banho.
- Também quero tomar banho.
Entraram os dois no banheiro fechando a porta.
- Então, você quer saber como começou tudo isso?
- Sim, quero.
- Bom, meu pai é um cara demasiado liberal.
- Eu sei disso.
- Pois é, sei que você sabe. Foi ele que me trouxe para cá. Venho observando os dois há tempos. Desde o primeiro dia que você pisou o consultório do velho.
- Como assim?
- Ao lado do consultório tem uma sala pequena, onde meu pai às vezes observa os pacientes. Deixa-os por minutos sozinhos e por intermédio do espelho, aquele grande do lado esquerdo, observa o comportamento dos pacientes.
- E você...
- Sim, eu observava suas transas.
- Mas isso é um despudor inconcebível!
- Pode não ser ético.
- Seu cretino, como odeio você...
- Como você pode me odiar se me deseja.
- Quem lhe disse isso?
- Meu pai.
- Seu pai...
- Sim!
- Mas eu nada revelei a ele.
- Lembre-se que ele é psicanalista e dos melhores, apesar desse seu liberalismo às vezes descarado.
- Canalha.
- Quem? Eu ou meu pai?
- Os dois. E assim, os dois se divertiam as minhas custas.
- Garanto que sempre a desejei. Meu pai que veio com o plano de observá-los, pois ele se excita sabendo ser observado, entende?
- Vocês dois são mais paranóicos que eu.
- Bom, o caso é o seguinte: consegui e você conseguiu o que queria. Estarmos os dois juntos. E o que é melhor, dentro da banheira.
- Concordo. Mas depois dessa creio que não vou querer te ver mais e nem seu pai, por um bom tempo.
- Não faz isso, sei que gostou de mim como gostei de você.
- Veremos, veremos – respondeu Malu saindo da banheira.
26.12.06
pastorelli

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

38 – A Dama do Metrô

Luciano beijou seus dois olhos, o nariz, os lábios, e transpondo cada fibra pulsante de suas células, desceu numa vagarosa lentidão que a deixava zonza. Parou os lábios úmidos no umbigo querendo furá-la com a ponta grossa da língua. Do seu peito, por entre os seios, fez uma carreira de pó até o monte Canaveral, e, foi lambendo em sentido contrário ao corpo dela, aspirando numa delicia inusitada. Malu excitada tremia ao ver passar por seus olhos o pescoço de pomo de Adão saliente, o peito nu de pelos, a barriga amorenada encontrando com sua boca numa variante ousada. Malu chegou por momentos perder a noção do tempo levada ao desvario.
- Agora é a sua a vez – disse Luciano.
Malu não se fez de rogada. Começando pela testa larga, passando pelo nariz, queixo, pescoço, peito, barriga e no túmido poço do prazer, caprichou com a devida intenção. E como ele, Malu começou lamber bem devagar a carreira branca proporcionando aos dois longos gemidos de quero mais. Pararam um pouco saciando a sede num bom copo de uísque gelado.
Nisso, sem que esperasse alguma reação, foi beijada na boca pela a mulher que estava com os dois rapazes, e, ao mesmo tempo sentiu outras bocas beijando seu corpo. Nisso, Malu caiu num estado de sonolência incontrolável. A partir desse momento não conseguia distinguir o que se passava diante de seus olhos, via apenas uma massa de corpos que rolava de um lado para outro.
Em certos momentos pensou ver Luciano beijando um dos rapazes, e da outra vez, pareceu que a mulher não era mulher...
Malu acordou com o sol em seus olhos.
22.12.06
pastorelli

sexta-feira, 17 de outubro de 2008


Nano


"Naqueles dias, os homens buscarão a morte e não a acharão;
também terão ardente desejo de morrer, mas a morte fugirá deles"

Apocalipse 9:6


1.


- Eu vou me deitar aqui e esperar – disse Perpétua para o grupo de mulheres desesperadas que corriam, gritavam e choravam tentando se ferir, sem sucesso. Ali, deitada, ela começou a repassar os fatos de sua vida, uma vida longa, insuportavelmente longa.
Perpétua lembrava de como tudo havia começado, 115 anos, 7 meses e 8 dias antes. Este era um dos efeitos colaterais da coisa. Não se podia esquecer nada. Era como se seu cérebro fosse um daqueles supercomputadores criados na segunda década do século XXI, que armazenava dados em um diamante. Sempre havia espaço para mais dados.
Infelizmente alguns dados ficavam sem explicação.
Americanos, franceses, ingleses, chineses, japoneses, seja lá o que for, ninguém soube quem criou ou liberou o vírus, apesar das acusações mútuas e negações várias. Vírus, antivírus, nanovírus, isso também era uma incógnita naqueles dias, pelo menos para Perpétua. Mas ela lembrava do que viu e ouviu, do que sentiu e viu sentirem.
O vírus ficou conhecido como Nano, de nanotecnologia, de 10-9, ou de bilhonésimo como algumas pessoas costumavam tentar explicar. Pega um milímetro, divide em um milhão de partes iguais e está lá o tamanho do bicho costumava dizer o pai de Perpétua. Tu pisas nele e ele aproveita para entrar na tua pele pelos poros.
O Nano se espalhou mais rápido do que qualquer cientista pudesse prever, e infectou a população mundial inteira sem que qualquer medida fosse quiçá pensada, quem dirá tomada. Pessoas do mundo inteiro ficaram doentes, a beira da morte, algumas com dezenas de doenças ao mesmo tempo. O sofrimento pela dor alheia era outra doença que afetava a todos. Hospitais não deram conta de atender as populações por falta de espaço, por falta de recursos, mas principalmente por falta de profissionais. Não importava qual fantasia infantil as pessoas pudessem ter a ponto de pensar que não, mas médicos e enfermeiros também ficavam doentes, e ficaram, como todo mundo. Depois de um tempo um cientista brasileiro disse em rede nacional que parecia que o Nano reprogramava toda a história gravada no DNA, e todas as debilidades que estivessem destinadas a surgir vinham a tona de uma só vez. Um cientista falando de destino. E então, assim que a instalação do nano estivesse completa, o hospedeiro ficaria curado de – e imune a – todas as doenças as quais pudesse ser acometido.
Assim, em poucos dias, todas as pessoas doentes se convalesceram, melhoraram, ficaram curadas, aleluia Nano.
Nano havia se tornado o novo Deus. A cura absoluta, a vida eterna, amém.


2.


E por dias, semanas, meses e até alguns anos, pessoas correram até as igrejas para agradecer a Deus por ter-lhes enviado o salvador, dessa vez para todos, aleluia, amém.


3.


- Eu me lembro da cada palavra do livro de Jó – disse Perpétua para as mulheres que se dispuseram a ouvi-la. – No capítulo 3, versículos 20 a 22, Jó pergunta "Por que se dá luz ao miserável, e vida aos amargurados de ânimo? Que esperam a morte, e ela não vem; e cavam em procura dela mais do que de tesouros ocultos; que de alegria saltam, e exultam, achando a sepultura?", e eu me pergunto o quão miserável estamos sendo todos nós com este desejo pela morte. Falávamos todos em não envelhecer, em não adoecer, em vida saudável, beleza do corpo. Vivíamos o culto ao belo, ao jovem, ao saudável. E agora estamos aqui.
Perpétua mais uma vez calou-se. Precisava estudar suas memórias para tentar entender o que estava acontecendo consigo. Deitada, deixou-se levar novamente pelos perfumes do passado, pela época de ouro.
Quando todos descobriram que não poderiam mais ficar doentes, a imprudência subjugou a razão, o delírio subjugou a imprudência, e o caos subjugou o delírio. Pessoas esqueceram-se das noções mais básicas de asseamento, de cuidado de si. Era a nova era de Aquário, Woodstock novamente. Paz, amor, liberdade, sexo e drogas. Sexo e drogas. Sexo e drogas. Menos para os governos. Sem doentes, os países ficaram com centenas, milhares de desempregados. Os hospitais tornaram-se obsoletos, verbas para a saúde foram remanejadas para outras urgências como segurança pública, agricultura e pecuária. O mercado de ações e as bolsas tiveram quedas astronômicas e grandes empresas farmacêuticas faliram. Preservativos e anticoncepcionais, sabonetes, cremes e xampus não conseguiam mais sustentar o mercado, e quando a população descobriu que não mais envelhecia, a exceção dos jovens que cresciam até os 21 anos para passar a sustentar aquela mesma aparência para todo o sempre (amém), as últimas empresas farmacêuticas fecharam. Os poucos centros médicos que mantinham funcionamento começaram a registrar um número cada vez menor de atendimentos. Apesar de toda a imprudência e de todo o caos, não havia mais ferimentos a bala, acidentes na estrada, tentativas de suicídio.
Dois meses após a cura milagrosa de todos os doentes foi registrada a última morte natural no mundo. Cinco meses depois, as estatísticas procuravam por qualquer tipo de mortes, em vão. Em um ano, as taxas de natalidade começavam a se tornar um problema difícil de manejar.
Dois anos depois, grandes governos efetuaram a recontratação de cientistas e médicos para estudar um meio de eliminar o Nano. Em cinco anos, pequenos países já estavam sem energia, sem água potável, sem espaço físico para uma vida digna. A migração para países com promessa de condições de sustentabilidade se tornaram inevitáveis. Países como o Brasil fecharam as fronteiras, já que a água havia se tornado mais cara do que o petróleo, e muitos de nós esperávamos o dia em que os americanos nos atacariam com suas bombas e mísseis e exércitos super treinados. Não aconteceu.
Havia algo no Nano que não permitia que acontecesse.
Descobrimos isso da pior maneira possível.


4.


Cinco anos. Cinco anos e nenhum acidente acontecia no trânsito, apesar de toda a imprudência. Nenhuma bala era disparada contra outro ser humano. Era como se uma consciência inconsciente, um titereiro sob a máscara da liberdade e da vida eterna, segurasse o dedo que puxaria qualquer gatilho. Pequenos acidentes domésticos curavam cada vez mais rápido, sem a necessidade de qualquer medicamento. Queimaduras, choques e cortes leves cicatrizavam em segundos, sem deixar marcas.
Mas o acaso, como para testar o destino, explodiu o sistema de gás de uma casa em São Paulo fazendo em pedaços o corpo de uma dona de casa comum, e o que talvez viesse a ser a primeira morte do mundo em muitos anos, acabou se tornando a primeira visão do horror que o Nano havia trazido às nossas vidas. Os bombeiros, a polícia e os canais de televisão chegaram ao local do acidente ao mesmo tempo. Ouviram os gritos da mulher que, conforme informações dos vizinhos, estava sozinha na casa no momento da explosão. Não havia meios de ela ter sobrevivido àquilo. Encontraram primeiro um de seus braços, o direito, retorcendo-se no chão como a cauda de uma lagartixa. Depois a parte inferior de seu corpo dividida na altura da cintura, tentando levantar-se e provavelmente voltar ao que estava fazendo antes de ser extirpada de sua dona. Todas as partes estavam incineradas ou queimando, e o cheiro da carne era insuportável. Quem encontrou a cabeça, unida aos ombros e seios e ao braço esquerdo, queimada e gritando por socorro, foi um cinegrafista que transmitia tudo ao vivo, via satélite, para todos os países do mundo que ainda tinham energia suficiente para ligar seus aparelhos eletrônicos.
Não éramos senhores de mais nada.
Éramos imortais, da pior maneira possível.
O Nano havia assumido o controle.


5.


Um caso semelhante foi noticiado na China após um terremoto que destruiu as construções de diversas cidades, deixando soterradas milhares de pessoas que sobreviveram durante semanas sem água, sem alimentação, sem perder o viço. Algumas sem diversas partes do corpo também.
Como partes de uma consciência coletiva, pessoas do mundo inteiro deixaram de usar e até mesmo captar e refinar petróleo, saíram de construções optando pelo ar livre em regiões onde o risco de terremotos era constante, estas entre outras ações de preservação não pensadas, apenas executadas.
Mas foi a cabeça de Angelita Carvalho Dias, a dona de casa que explodiu, falante e viva, que ficou conhecida como a Cabeça de Orfeu, condenada a viver eternamente como um busto bizarro a ser estudado, observado e ouvido, sofrendo a saudade fantasma do corpo que estava destinada a não ter.


6.


Os governos, iniciaram ações com medidas desesperadas. Enquanto o Nano impedia as pessoas de se machucar, e até que o vírus compreendesse totalmente o que era prejudicial a ele, os governos puderam implantaram um sistema de esterilização em massa. Com a população mundial crescendo exponencialmente, com os espaços habitáveis se tornando escassos, a agricultura se tornando insuficiente, bem como a pecuária e a industrialização em geral, e a economia mundial falida, o único meio de tentar estabilizar o problema era zerar a taxa de natalidade.
Os filhos mais velhos da era Nano estavam agora com sete anos e, para espanto de seus pais, eram tão padronizados que mal podiam ser diferenciados. Altura, peso, condições de saúde, inteligência. Até os primeiros passos foram dados com a mesma idade. Nenhuma deficiência era encontrada, nenhuma síndrome. Talvez todas tivessem o mesmo tipo sangüíneo, mas quem se importaria em descobrir? Com saúde impecável, não se machucavam nunca. Era como se nascessem com um equilíbrio inabalável, com um instinto de sobrevivência impecável, sobreviventes.
Para os governos, a esterilização foi uma ação arriscada. Apesar de não mais terem gastos com saúde, com segurança, e, no caso dos filhos da era Nano, com educação – as crianças desenvolviam habilidades como se estivessem programadas para executar programas de instalação de tempos em tempos – os governos já não mais conseguiam recolher tantos impostos, entrando cada vez mais em déficit do qual imaginavam que talvez nunca fossem conseguir sair.
Ainda assim, o governo brasileiro agiu.
Falo do governo brasileiro pois, àquela altura, não tínhamos mais notícias do resto do mundo. Recebíamos energia elétrica e sinais de rádio apenas durante uma hora por dia, das 19h às 20h, quando a Voz do Brasil era transmitida para que pudéssemos saber o que fazer, como agir.
O programa de esterilização foi rápido e praticamente indolor. Homens submeteram-se a vasectomia, mulheres a laqueadura das trompas. Se quiséssemos arranjar meios de viver com dignidade sobre o espaço territorial que nos era devido, precisávamos estagnar o crescimento que o Nano havia gerado. Todas as cirurgias eram reversíveis, diziam os porta-vozes do governo, e se um dia a cura para o Nano fosse encontrada e pudéssemos finalmente morrer, os mais jovens poderiam voltar atrás, e gerar herdeiros para a terra.
Se os cálculos dos estudiosos de Brasília estivessem certos, a população mundial já teria atingido 18 bilhões de habitantes.
E, se não agíssemos logo, o Nano não permitiria que seu legado fosse interrompido.


7.


O Nano não permitiu.
Mulheres continuaram a engravidar, crianças continuaram a nascer.
Grupos de resistência começaram a surgir aqui e ali, tentando suicídios de diversas maneiras. Mas ninguém conseguia saltar de prédios, ninguém conseguia empurrar seus amigos de quaisquer que fossem as alturas, e em pouco tempo, ninguém mais conseguia subir mais do que alguns poucos degraus. Algo no cérebro das pessoas as impedia.
Ninguém conseguia se afogar, o corpo girava e boiava. Conta-se que um grupo conseguiu enganar o Nano e amarrar pesos nas pernas, saltar em alto mar e afundar. Dizem que foram encontrados alguns meses depois na beira da praia. Seus corpos intactos e vivos não precisavam mais de oxigênio.
Os extremistas negaram-se a comer e beber. Isso também não foi problema para o Nano. É exatamente por isso que hoje, mais de 100 anos depois, nenhum dos filhos do Nano precisa respirar, comer, beber, urinar ou defecar. Eles apenas habitam e vivem para ser hospedeiros de um vírus que quer viver. São automóveis, modelos sempre novos para serem dirigidos pelo Nano. Também são veículos anfíbios, pois quando a ocupação dos continentes ficou completa, os filhos do Nano começaram a se dirigir para o oceano. Diversas colônias hoje vivem sob as águas, Novas Atlantis onde Nano é o único Deus, aleluia.


8.


Aqueles que nasceram antes da liberação do Nano voltavam cada vez menos às igrejas. Lá, a única pergunta era "Por quê, Deus, nos enviaste praga tão cruel?". E Deus, aparentemente, nunca soube responder.
Depois de alguns anos, as igrejas deixaram de existir, e a fé se tornou ornamento, um tipo de flor que brotava apenas em solidão.


9.


Os cientistas, na época da esterilização, acreditaram que o Nano, tendo percebido a estratagema da ciência, havia recuperado as trompas e os canais deferentes seccionados. Se era capaz de curar doenças que a ciência mal foi capaz de estudar, recuperar pequenas secções devia ser um quebra cabeça de apenas duas peças para ele.
Com este último fracasso, demorou pouco tempo para que os governos brasileiros se extinguissem, e dez anos após o Nano, estava instaurada a anarquia, ou melhor, a Nanorquia, onde apesar de nosso livre arbítrio, a única vontade que prevalecia era a do Nano. Ainda éramos capazes de desejar a morte, mas não éramos mais capazes de alcançá-la.


10.


As fronteiras do mundo acabaram. Com a reprogramação de nossos corpos que não mais necessitavam de alimentos, ar ou água, metrópoles ruíram, e o planeta tratou de reflorescer. Plantas cresciam por todo lado, animais viviam livres, deslocavam-se livres, sem nem perceber nossa presença. Cinqüenta anos após a infecção pelo Nano, o mundo também estava curado. Não que este tivesse sido infectado. A doença do mundo éramos nós, a saqueá-lo, perfurá-lo, sujá-lo. Com o Nano, o mundo não nos via mais como ameaça. Animais não nos viam mais como ameaça. Não éramos atacados, mordidos, picados. Nos tornamos pedras. Se não nos mexêssemos rápido, podíamos ser cobertos por limo ou líquen.
O Nano, que não parava de se multiplicar, precisava sempre de mais humanos, mas esqueceu-se daqueles que nasceram antes dele quando o assunto era reprodução. Era mais fácil induzir os filhos, e agora netos e bisnetos do Nano a reproduzir-se. Nós, da resistência, desejávamos demais a morte para gerar vida. Se fosse perguntado a qualquer pessoa nascida antes do Nano, um dia antes da chegada do vírus, se ela gostaria de viver para sempre jovem, ela venderia a alma para alcançar tal dádiva. Hoje, muitos venderia a alma para alcançar o fim.
Resistência. Sete bilhões de pessoas que conheceram uma vida que terminava em morte. Somos 7.000.000.000 de habitantes com memória de como era chegar ao fim, como era sofrer a perda de um ente querido. Isso mesmo, um sete com nove zeros.
Muitos de nós nem sabe mais por onde andam seus entes queridos.
Muitos de nós nem sabe mais por onde anda.


11.


- Eu desisti do espelho há muito tempo! – exclamou Perpétua para a caverna onde dezenas de mulheres esperavam que ela se manifestasse. – E sei que várias de vocês fizeram o mesmo. Vejo pelos cabelos sujos e engrenhados, pelo aspecto de seus rostos sujos. Mas tenho uma péssima notícia. Mesmo com os cabelos e faces imundos, mesmo com os trapos a lhes cobrir o corpo, vocês continuam parecendo lindas mulheres de trinta anos, com os corpos malhados como se ontem tivesse sido seu último dia na academia.
- Tanto suor, tanto esforço por uma beleza que eu não suporto mais olhar. Não suporto a idéia de olhar durante 115 anos para o mesmo rosto, para o mesmo corpo. Eu daria tudo para envelhecer. Para ver a mulher que eu teria me tornado. Para descobrir quem estaria ao meu lado no final da minha vida. Para acordar em outro plano. Eu, que nunca acreditei em vida após a morte, agora não consigo acreditar em vida após a vida.
Perpétua percebeu que várias das mulheres começaram a derramar lágrimas silenciosas, marcas de quem há muito se acostumou a sofrer em silêncio.
Fechou os olhos e voltou para suas lembranças.


12.


O tempo passou. Muitos de nós, que havíamos conhecido a tecnologia, a energia elétrica, o mundo moderno, e que agora vivíamos uma nova idade antiga em pleno século XXII, ainda temos em nossa memória a habilidade para construir, para gerar, para crescer. O Nano não nos permite. Com toda a força que lhe foi dada, com toda a consciência que lhe foi conferida, o vírus foi capaz de controlar a maioria ou a totalidade de nossos impulsos, mas não foi capaz de apagar nossas lembranças ou nossos desejos. Aqueles 3% de massa encefálica que usávamos segue intacto. Ou talvez seja apenas nossa alma.
Idade antiga é lirismo. Voltamos mesmo à era das cavernas.
Cinqüenta anos após a chegada do Nano, e depois de três gerações de filhos do Nano, já não éramos capazes de diferenciar os novos homens entre si, as novas mulheres entre si. Os bisnetos do Nano tinham todos a mesma aparência, altura e peso. A mesma estrutura, a mesma voz. E ainda assim eram capazes de se distinguir entre si.
Babel foi desfeita. Aqueles que conseguiram migrar para outros lugares descobriram que sua fala estava alterada, e que todos, no mundo inteiro, eram capazes de se comunicar através de uma nova língua, que não saía de suas bocas, mas de suas ondas cerebrais. Algo lógico já que não mais respiramos, e a voz necessita do ar para se propagar.
Apenas pensamos em nossas línguas mãe.
E com o tempo, nos acostumamos a não ser donos de nossos atos.
Apenas de nossas esperanças.


13.


Foi há exatos doze anos que um novo horizonte começou a se apresentar. Depois de mais de 100 anos de reinado coletivo do Nano, alguma mutação aconteceu. Talvez o planeta esteja tentando se proteger, ou apenas a multiplicação do vírus esteja começando a gerar novos espécimes mais fracos, ou mais fortes.
Há doze anos, como na Revolução dos Bichos de Orwell, alguns porcos resolveram andar sobre duas patas.
Um grupo de homens e mulheres da nova geração de descendentes do Nano aparentemente decidiu que eles deveriam tomar posse da terra. Não coexistir com o planeta e com a natureza, mas dominá-los. Explorar o que há de natural e os conhecimentos dos habitantes antigos, e desenvolver meios de viver em lugares mais altos, com mais conforto, e quem sabe até ocupar outros planetas.
Outro grupo, mais extremista, decidiu que apenas os Nano mais fortes deveriam ser deixados vivos, e a esperança de experimentar o fim reacendeu em quase todos nós, que um dia fomos resistência.
Saímos todos a procura desses extremistas, e foi assim que chegamos até aqui, 115 anos, 7 meses e 8 dias depois da liberação dos primeiros vírus.


14.


Eles se autodenominaram Os Messias. Ofereceram-nos a oportunidade de termos o fim que desejássemos, ainda que não entendessem o porquê de não querermos viver. Era como se não entendessem nossa esperança de encontrar um paraíso, um Deus que nos explicasse o motivo de tanto sofrimento, um alento. Então separaram os homens das mulheres, levaram-nos para lados diversos do planeta, e, com promessas que nos fizeram amá-los, nos amaram.
Apenas mais uma artimanha.
Os Messias precisam de nós. Acreditam que apenas os cruzamentos entre suas espécies evoluídas e nossos corpos basicamente humanos eles podem criar aqueles que irão liderar o levante contra os Nano que eles chamam de obsoletos.
Nos transformaram em reprodutores. Pais de uma geração que quem sabe um dia será capaz de combater os nossos opressores iniciais.
Com algum tipo de ciência, misticismo ou bruxaria que só cabe aos Messias, reativaram sistemas de nossos corpos há muito mortos.
Quem sabe esse pouco de energia que nos foi dada seja tomada quando dermos à luz aos monstros que geraremos.
Quanto aos homens, não sei que fim levaram. Rogo para que, como viúvas negras, as Messias tenham dado a eles o descanso final após cumprirem suas tarefas.


15.


- Eu vou me deitar aqui e esperar – disse Perpétua para o grupo de mulheres que se deitava e acomodava ao lado dela. – Nosso Messias foi embora, e está claro que somos apenas reprodutoras agora, sem nenhuma utilidade a não ser dar a luz ao que quer que venha a nascer. Fomos enganadas.
- O certo é que se nos deitarmos e esperarmos por nove meses, talvez até menos, isso não fará diferença alguma. Essas crianças irão nascer sem a nossa ajuda. Durante esse tempo o que nos cabe é rezar, para que, ao nascer, nossa fé seja recompensada, e nossa energia se esvazie junto com nossos úteros.
- Nove meses são segundos para quem tem 145 anos.
Eu vou me deitar aqui e esperar, e isso é tudo, tudo o que eu posso fazer.


Anderson Santos

poema - corasol

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corasol


se tardo cedo

se cedo tarde

cedo e tarde

ardo

queimo
entre as 10 e as 14

queimo
na sombra

queimo
entre as horas de teu corpo

queimo
fora de hora

tem tratamento

cremes pós-sol
tentam acalmar a pele

no hospital de queimaduras
o plano de saúde
cobre aplicação de raios laser

melhora o aspecto
da parte de fora
um coração que arde
não se cura do sol por dentro
ao anoitecer

de madrugada
deixa as cortinas abertas

para eu te queimar
de lua


AL-Chaer

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

37 – A Dama do Metrô.


O quarto na meia luz não se conseguia ver os detalhes. O que Malu viu foi três pessoas num furor sacudindo a cama que rangia a música de corpos em prazeres nunca imaginados. Não sabia se entrava ou se voltava. Por segundos ficou com os olhos presos naquela massa escura que gemia embolada pela penumbra do quarto.
- Não quer participar? – ouviu alguém dizer a suas costas.
Era Luciano. Pega de surpresa, se assustou, pois ele estava nu, e trazia uma garrafa de uísque e quatro copos.
- Eu... Não sei... – gaguejou
- Ora vamos, você está aqui para isso, não é?
- Bem... Na verdade é que...
- Então, entre.
E com o corpo foi empurrando Malu para dentro do quarto. Não teve tempo de esboçar nenhum gesto de recusa. Deixou-se levar. Foi se afastando até que suas pernas encostaram-se à borda da cama. Sem pressa, Luciano depositou os copos no chão, abriu a garrafa de uísque e encheu dois copos, ofereceu um a ela. Com a respiração ofegante, Malu sentou na cama e aceitou o uísque. Luciano sentou ao seu lado.
- Beba devagar, não precisa de pressa, temos a noite toda.
Malu olhou para os três atrás deles, como se dissesse:
- E eles?
- Não liga, não ligam para nós.
- Mas você estava com eles?
- Usou a expressão certa: estava, agora não estou mais. São meus amigos.
- Os três homens?
- Não, dois homens e uma mulher.
- Ah! Sei...
Luciano se achegou mais para perto dela. Malu tremia, queria e evitava em tocá-lo. Talvez por sua nudez assim de repente, tenha a constrangido. Tomou mais uma boa dose de uísque. A bebida desceu esquentando-a. Sentiu a tensão se relaxar. Envolveu-se numa ternura sem explicação quando os lábios vermelhos de Luciano tocaram os seus. Os seios queriam furar a blusa espetando o peito nu de Luciano. As mãos deles subiram por suas coxas, encontraram resistência que logo caíram em seus dedos conhecedores de grutas e cavernas.
Seus corpos se estiraram ao lado dos outros. Com a paciência que lhe cabia, Luciano foi tirando peça por peça e beijando seu corpo a cada peça que era jogada longe. Sentado em cima dela, apreciava a pela amorenada num arfar tépido de satisfação. Segurou o prazer para não molhar, ainda, a macieza da pele que tanto desejara. Malu saboreava a visão fálica apontada para seu rosto, fez menção de se mexer, porém, resolveu ficar imóvel e ver até onde Luciano ousaria.
21.12.06
pastorelli

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

poema - preferencial ao portador

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preferencial ao portador


o amor é cego
e pede sangue

oh positivo
oh negativo

nesta biometria
incalculável

à vista
a prazo

fujo do sinal de igual
não dou conta
ou se me dou conta
não somo
ou sumo

vale a gastrite
apostar a paixão
no seu mercado futuro

o amor não é cego
é a escuridão
que toma conta

tomo um pouco de ar
tomo um pouco de espaço

pra quê eletrocardiograma
a tira de papel é muito estreita
para esses altos e baixos

minha vista está turva
o amor é embaçado

não me venham com colírios
eu só preciso de uma bolsa
de sangue

tipo dela

e um anti-ácido


AL-Chaer

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Série: Futebol em Movimento / AL-Chaer

Poesia Visual
AL-Chaer
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Eu tinha colocado em um "pôsti" anterior, que voltaria para falar sobre os meus poemas visuais que participaram, recentemete, da I Bienal Internacional de Poesia de Brasília. Eis, então.
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O eixo da obra Futebol em Movimento é a paixão pelo Futebol.
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Vários poemas visuais constantes deste conjunto foram submetidos à apreciação do curador Wagner Barja e cinco foram selecionados para a mostra OBRANOME II, que ficou em exposição no Museu Nacional da República, de 4 a 28 de setembro, fazendo parte dos eventos da I Bienal Internacional de Poesia de Brasília.
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Cinco poemas visuais compõem o movimento desta paixão descrevendo os elementos fundamentais, a saber: a tática, o drible, a torcida e o ídolo, o Rei e a rivalidade.
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Estes Poemas Visuais – na linha do Letrismo – buscam representar a palavra ideogramatizada.
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Convido-os a visitar o Blog "visu-AL-Chaer", no endereço:
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Neste Blog, há - ALém de outros poemas visuais de minha ALtoria - todos estes poemas desta Série Futebol em Movimento, apresentados na sua Versão originAL e com fotos da Mostra de Poesia Visual, que aconteceu no Museu Nacional da República.
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AL-Braços
AL-Chaer

Um pouco sobre Poesia Visual

Para começar, a Poesia Visual divide o “leitor” em duas categorias: os que a apreciam como mais uma forma de manifestação da arte e os que (apreciando ou não) discordam do termo “poesia” utilizado para classificar esta manifestação artística.

Ainda há muita resistência para com a Poesia Visual. Uma resistência até que compreendida, principalmente em meados do século passado, pois a Poesia Visual foi considerada um movimento de vanguarda. Toda vanguarda incomoda. As vanguardas têm uma conotação de ruptura e, as rupturas perturbam a ordem natural dos acontecimentos. No entanto, se voltarmos ao tempo das cavernas, notaremos que as pinturas rupestres já davam uma pista de que o Homem necessitava de símbolos e signos como mais uma forma de se comunicar. Ali se manifestava a essência e, na minha opinião, a gênese da Poesia Visual.

A expressão “Poesia Visual” se espalhou mundialmente, no século passado. Atualmente, alguns estudiosos preferem chamá-la de Poesia Inter-semiótica, o que – conceitualmente – é um termo mais abrangente para representar esta forma de expressão. Contudo, a denominação Poesia Visual “pegou” e quanto a isto não há nada o que fazer.

Vejo que o cerne da resistência sobre esta manifestação da Poética está no equívoco que cometemos ao falar do que seja Poesia e do que seja Poema. Acontece que confundimos Poesia com Poema. Se formos buscar uma definição simples, fico com: Poesia é o gênero de composição poética e Poema é a obra deste gênero. Estamos acostumados com o Poema na forma de texto. A palavra como elemento por onde o Poema se forma para dar vazão à Poesia. Lembremos Platão, quando se preocupou em separar as obras literárias em três gêneros: a tragédia e a comédia (no teatro), a poesia lírica e a poesia épica. A Poesia Visual seria, portanto, mais um gênero da Poesia.

Convido-o, leitor, a atravessar a linha do tempo, sem nos preocupar com a cronologia: saltemos para o início do Século XX, com os caligramas de Apollinaire; retornemos ao final do Século XIX, com Mallarmé e sua profusão mesclando simbolismo e dadaísmo, especialmente no clássico Um coup de dês jamais n’abolira Le hasard; voltemos ao Século XX, com os estudos de Ezra Pound, o surgimento do Movimento Concretista (tendo o Brasil como um dos expoentes nesta linha, ao ponto de criar a denominação Poema Concreto, mundialmente adotada); ainda no Século XX, lembremos o Letrismo, na Europa de 1940; e o que dizer da Arte Pop, que colocou tudo junto?

Poderíamos explorar mais eventos nos últimos cem, duzentos anos, para dar exemplos de toda a efervescência dos movimentos artísticos e literários, mas os citados acima já bastam como referência para chegarmos à atualidade, com todo o avanço tecnológico, que coloca à disposição do Homem ferramentas de hiper-texto, onde texto, imagem, sons e movimento podem ser manipulados (no sentido “faber” da palavra) com extrema facilidade. Para concluir esta linha de raciocínio, o que – numa época – foi vanguarda, hoje é conseqüência natural da História da Poesia. Entendo que a Poesia Visual deve ser compreendida como mais um gênero, sem tomar espaço de nenhum outro.

A Poesia Visual parece muito com Artes Plásticas? Parece, sim. Utiliza dos recursos das instalações? Utiliza, sim. É Poeta? Ou é Artista Plástico? Quando se reduz (no sentido de síntese) ao objeto em si, parece escultura? Parece. E quando se utiliza da animação? Da imagem em movimento? Estaria mais próxima do cinema? O Poema Visual exagera no hermétismo? Carece de significação? Cadê o diálogo com o “leitor”? São indagações pertinentes, sim. Eu também as faço para mim mesmo. Mas este questionamento deve ser feito com “abertura” rumo a compreensão e não com má vontade, apenas com a pré-disposição ou – até – um preconceito para com a Poesia Visual.

Na minha produção de Poesia Visual, nos últimos 3 anos, tenho me limitado à “palavra ideogramatizada”, que – descobri - está no manifesto do “Letrismo”, de modo a não me afastar da palavra. E, analisando a minha trajetória e as experimentações e influências, a palavra ainda é o meu símbolo preferido. Daí eu ainda não ter passado ao objeto em si, ao objeto pelo objeto, simplesmente. Daí eu não ter – ainda – experimentado o poema visual que se parece, apenas, como uma escultura. Daí eu não partir para o poema visual que se parece, apenas, com uma tela de pintura e/ou colagem. Mas tudo é uma questão de opção. Só o tempo dirá se minha Poesia Visual trilhará outras vertentes, que não sejam o que chamo de “ode à palavra”, explorando os caracteres que a formam.

Mas, ficar querendo impedir essa interseção, acho que não tem sentido. E, salientando mais uma vez, o que foi vanguarda em meados do Século XX, atualmente não tem mais esta conotação. A questão das rupturas é uma discussão que ficou no passado, entre os oponentes da época. Atualmente, todos somos sobreviventes e ninguém perdeu a guerra, nem houve vencedores.

Há espaço para a Poesia no Poema-Texto. Há espaço para a Poesia no Poema Visual. São dois espaços distintos, que demandam leituras distintas. Um não sobrepuja o outro. E vice-versa. E, por falar em vice, não há “segundo lugar”. Há o lugar de cada um.
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AL-Braços
AL-Chaer

domingo, 5 de outubro de 2008

36 – A Dama do Metrô


Sozinha, perdida no meio da multidão, ficou sem saber como agir e para onde ir. Os pés começavam a doer, não devia ter vindo de sapato alto, pensou abrindo a porta da cozinha. Não tinha ninguém, apenas a empregada que lavava a louça suja. Serviu-se de um uísque bem generoso e voltou para a sala. Não conhecia ninguém, aliás tinhas umas pessoas que viu de relance na televisão, no cinema, mas nada que se dissesse: eu conheço. Procurou com os olhos para ver se via Valdo, mas este assim que chegaram, deixou-a plantada no meio da sala e, subiu a escada acompanhada de uma loira platinada. Tinha sido avisada, não podia reclamar.

- Na festa cada um cuida de si, certo?
- Certo. – respondeu concordando.
Certo, é isso mesmo, pensou. Aceitou o convite, isto porque, seu relacionamento com Valdo estava na linha reta, aliás já tinha se prolongando muito. Vira somente uma duas vezes Luciano e, foi em momentos que não dava para falar com ele. Soubera que freqüentava esse tipo de festa, portanto nada mais justo estar aqui. O que a deixou assim meio ressabiada foi ser obrigada a fazer o exame de HIV, mas sem ele não poderia estar aqui, pois fazia parte da regra do jogo, era o convite para ser aceita. Relutou um pouco a principio, mas quem não fica com medo ao fazer exame desse tipo? Felizmente seu exame dera negativo, não tinha a famigerada doença, portanto agora era só se divertir.
Ao colocar o copo em cima da mesa, reparou que um senhor a olhava. Disfarçou para que não percebesse que ela tinha percebido o seu olhar. Pegou outro uísque que o garçom lhe oferecia. Bom, o jeito é circular no meio desse pessoal, ficar parada não vai adiantar nada, disse mentalmente.
De repente surge cambaleando uma moça nua no alto da escada. Todos voltaram à atenção para ela com medo de rolar escada abaixo. Nisso, vindo do fundo do corredor apareceu um rapaz, também nu, e a agarrou, arrastando-a para um dos quartos. Todos voltaram suas atenções para si mesmos, isto é, voltaram as suas conversas.
A sala não era muito grande, não estava completamente cheia, se via grupinhos aqui e ali, ou pessoas sozinhas perambulando sem saber o que fazer, como ela. Talvez alguém a notando e se interessando por ela, ou ela se interessando por alguém poderia sair daquela pasmaceira em que se encontrava. Porém não tinha ninguém em que pudesse se interessar. E quem ela procurava não estava aqui ou, se estava, deveria estar lá em cima num dos quartos. Por isso, resolveu subir. Quando estava no meio da escada, notou os olhares sobre ela. Entendeu, ninguém subia se não fosse acompanhado.
- Bom agora que já subi a metade não vou voltar. – pensou.
Assim que pisou o último degrau, deparou com um imenso corredor com portas dos dois lados. E agora? O que faria? Como se não quisesse nada, despreocupada, abriu a primeira porta, afinal era marinheiro de primeira viagem, ninguém lhe dera explicação nenhuma. Assim sendo, abriu a porta a sua esquerda. Bem devagar, e, o que viu deixou-a tremula e umedecida.
20.12.06
pastorelli

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Bons Sonhos

Quando a noite me traz um doce sonho,
pela manhã me invade um sentimento
que não sei explicar mas que suponho
vem de um adormecido encantamento.

Tudo porém desfaz-se de repente
e da porta daquele terno mundo
ainda a cintilar em minha mente,
ecoa o meu suspiro mais profundo.

São gente simples, são belas paisagens
que despertam em mim uma saudade,
e me fazem querer que tais imagens
possam ser parte da realidade.

Resta-me expulsar a nostalgia
deixada pelo engano da magia.

Rosa Clement